INFÂNCIA MACULADA

“Alunar, alunar,
fogaréu vertical;
aterrar, aterrar,
não preciso de seu medo, mamãe,
só morrer é seguro.
Tudo em paz, tudo bem,
quero ver soluções;
boa noite, meu bem,
tudo em paz com nosso amor e depois
só morrer é seguro.”

In: Alunar – de Milton Nascimento

Você sabia que o abuso sexual continua ocupando o segundo lugar dentre as violências mais sofridas por crianças e adolescentes brasileiros, só perdendo para negligência e abandono?

Em 2024 a Fundação Abrinq atualizou sua publicação anual intitulada Cenário da Infância e Adolescência, com dados públicos sobre crianças e adolescentes no país, incluindo a violência sexual contra estes.

Ali, a constatação mais impressionante envolve a constatação de que a cada quatro casos de violência sexual no Brasil, três das vítimas são criança ou adolescente.

Dentre as notificações de violência sexual, a maioria das vítimas são jovens e meninas, redundando em 87,7% dos casos de violação ocorridos no país.

A publicação registrou ainda que em 68,7% dos casos, os abusos ocorrem dentro do ambiente familiar da vítima. Outros locais apontados foram: a escola (3,9%) e as vias públicas (5,3%).

Por outro lado, some-se à isto a terrível confirmação de que o Brasil – entre 2022 e 2024 – passou de 27º para 5º lugar entre 51 países com mais denúncias de abuso sexual infantil pela Internet.

Nos primeiros lugares aparecem Bulgária, Reino Unido, Holanda e Alemanha.

As informações acima encontram-se no Relatório da Rede Internacional InHope, que reúne 55 canais de denúncia de crimes pelo mundo. 

E como ficam nossas meninas e nossas crianças sobreviventes?

Estudos recentes apontam que, em diagnósticos psiquiátricos envolvendo a violações sexuais, 46% dos casos vão resultar em transtornos depressivos e 32% em transtornos de estresse pós-traumático.

Os autores são conhecidos por suas vítimas em mais de 80% dos casos, e a violência sexual completa ocorre em quase 50% deles.

Um dado indiscutível é que a gravidade do ultraje mantém uma correlação significativa com uma enorme gama de transtornos psiquiátricos.

O desconsolo reside no fato de que a grande maioria das agressões sexuais permanece não relatada, o que torna difícil a coleta de dados confiáveis sobre o número dos crimes praticados.

Persistem, ainda, entraves relacionados a forte sentimento de culpa ou de vergonha, dificuldades cognitivas e de desenvolvimento, transtornos psicológicos, natureza do abuso, relação com os agressor, existência de confiança com o prestador de cuidados pós trauma e ameaças contra a vítima.

E, nestes casos, tudo corrobora enquanto fator a desencorajar a denúncia.

A maior parte dos autores de abuso sexual contra meninos e meninas é do sexo masculino. As meninas são mais propensas a fazer a denúncia do que os meninos. Existe consenso de que estes ataques são mais prevalentes entre as meninas, tendo maior impacto sobre elas também.

Este crime tem efeitos a longo prazo no bem-estar mental, dependendo da gravidade e da persistência do abuso. É reconhecidamente um fator de risco para muitos transtornos psiquiátricos na infância, adolescência e idade adulta.

Os problemas psicológicos mais comuns associados ao abuso sexual na infância são depressão, ansiedade e raiva.

Há também uma importante associação destes atos sórdidos com recorrentes tentativas de suicídio, baixa autoestima, medo, insônia, queixas somáticas, problemas de atenção e concentração e distúrbios alimentares.

Crianças vítimas de abuso sexual podem ter menos amigos íntimos, mais conflitos com os pais, mais parceiros sexuais e mais bloqueios no sentido de se abrir para relacionamentos mais emocionalmente produtivos, diferente do que ocorre com crianças que não passaram por este trauma.

Então, com certeza, você tem ciência de que grande parte dos agressores é composta pelos próprios pais ou por outros familiares, assim como por pessoas de convívio muito próximo da criança e do adolescente, como amigos e vizinhos, certo?

Diante do que, aparentemente, já deveria ser de ‘conhecimento público’, passo a relatar o impressionante e desolador resultado de uma pequena pesquisa que fiz junto a vídeos registrados no youtube.

É simplesmente inconcebível que ainda se possa espalhar imagens que relacionem crianças a algum tipo de dança com apelo “sensual”. É estarrecedora a constatação da existência de um número nada desprezível de vídeos muito desprezíveis, onde criancinhas aparecem reproduzindo gestos de cunho erótico, cujo significado, com certeza, não têm nenhuma capacidade de entender.

Isso sem contar o número de visitas, um deles chegando a mais de 2 milhões de views!

Classifiquei a amostra como ‘incontável’, além de insuportável, porque desisti de continuar a computá-la assim que percebi que o número extrapolaria as minhas mais pessimistas previsões.

Existe, de fato, um certo clima coletivo que favorece a exibição e a exploração da sexualidade feminina desde sua mais tenra idade e que enxerga o corpo da mulher como depositário de riquezas, tornando-o, desta forma, quase um pasto do desejo erótico masculino.

Entre perplexa e indignada pude comprovar que a grande maioria destes vídeos foi postada por pais (pais ou mães), tios, padrinhos e amigos da família dos pequeninos.

Alguns comentários postados abaixo destas gravações conseguem ser mais infames e indecentes do que a própria situação à qual essas inocentes crianças são submetidas.

Penso que tais injúrias deveriam ser retiradas da rede, acompanhando-se tal medida de uma campanha educativa que visasse orientar os pais, responsáveis, familiares e amigos dos menores expostos no sentido de explicar-lhes que o respeito pelo corpo passa, necessariamente, pelos direitos ao cuidado e a preservação do mesmo, assim como à privacidade da sua intimidade.

Desta forma, registro, a seguir, três perguntas que não devem calar:

– O adulto, seja ele seu responsável legal ou não, tem direito de dispor, a seu bel prazer, da imagem de uma criança?

– Como se admite este tipo de exposição – involuntária, por parte da criança – sem que se considere o ônus emocional que lhe custará, tanto agora quanto futuramente?
– Que tal pensarmos na mensagem subliminar que este tipo de prática registra no psiquismo infantil?

A mais plausível, sem dúvida, é a de que a criança passe a considerar que seu corpo, desde cedo, não lhe pertence e, portanto, é passível de servir como objeto de diversão (e, consequentemente, prazer) do adulto que dela se aproximar.

Ora, se sua imagem pode ser repercutida virtualmente, sem qualquer limite ou controle, como é que ela terá condições de se cuidar e preservar sua própria intimidade?

Que direito acreditará ela ter sobre seu próprio corpo se não for auxiliada a compreender que o valor e a graça de uma mulher não residem apenas no aspecto físico, mas num conjunto muito mais amplo de elementos que envolve saúde, educação, conhecimento, discernimento e equilíbrio?

Até quando vamos permitir que nossa sociedade avance, assim, tão desprovida de afeto?

E, se desejar, envie seus comentários para psicologaheloisalima@gmail.com

Deixe seu comentário...