“A mulher de dentro de cada um não quer mais silêncio.
A mulher de dentro de mim cansou de pretexto.
A mulher de dentro de casa fugiu do seu texto.
A mulher de dentro de cada um não quer mais incesto.
A mulher de dentro de mim já cansou desse tempo.
A mulher de dentro da jaula prendeu seu carrasco.”
In: Dentro de Cada Um – de Elza Soares
Vamos falar sobre misoginia?
Em uma designação simples, misoginia pode ser definida como ódio, repulsa, desprezo e preconceito gratuito contra as mulheres. É um tipo de sexismo que busca mantê-las em condição de inferioridade, a fim de conservar os papéis sociais do velho e conhecido patriarcado.
Vale lembrar que o sistema patriarcal não é apenas comandado e controlado por um grupo de pessoas, mas sim por um tipo muito específico de pessoas.
O patriarcado, normalmente definido como um sistema de sociedade ou governo no qual os homens detêm o poder e as mulheres são excluídas dele, é um evento humano recente que tem aproximadamente a mesma idade histórica da misoginia.
E que estabelece relações sociais totalmente assimétricas que incentivam a crueldade, o egoísmo e a violência,
Logo, a misoginia e o patriarcado são a raiz de todos os horrores que envolvem a condição feminina.
E, acredite, as instituições patriarcais nunca serão capazes de curar as feridas provocadas pela misoginia.
Todas nós experimentamos seus efeitos traumáticos de maneiras extremamente deletérias, porque implica um sofrimento universalmente compartilhado, profundamente enraizado e comprovadamente invisível aos olhos daqueles que deveriam nos defender.
Porque todos nós ansiamos por paz, segurança e empatia para que consigamos ser vistos e ouvidos, com amor e cuidado, uma vez que esta é a nossa verdadeira pulsão humana.
Por isso que, cada dia mais, nos surpreendemos com criaturas (homens com graves desvios de personalidade, na sua maioria) capazes de expressar, por exemplo, que mulheres vítimas de violência sexual, seriam responsáveis pelas atrocidades e covardias que sofrem.
É certo chamar estes tipos covardes de ‘seres humanos’?
Da mesma forma que nos choca saber de policias encarregados pela condução dos depoimentos de mulheres abusadas, tenham a desfaçatez (ou seria pura maldade?) de perguntar às vítimas se elas costumavam participar de ‘sexo grupal’ ou brutalidades parecidas.
E se fosse sua mãe? Sua irmã? Sua filha?
O que este tipo de ‘abordagem’ releva é que vivemos em uma sociedade adoecida capaz de conceber o estupro, ou qualquer violência contra a mulher, como algo ‘normalizado’.
Esta ‘concepção’ do papel da mulher na sociedade afeta TODAS as mulheres. Todas.
O estupro de uma mulher representa a degradação, o terror e a destruição dos direitos de TODAS as mulheres. E a maioria delas acaba limitando seu comportamento por causa da eminência do estupro.
Por isso, mulheres e meninas vivem diuturnamente com medo. Enquanto os homens, em geral, não. É assim que o estupro funciona como um meio poderoso pelo qual toda a população feminina é mantida em posição subordinada à toda população masculina, embora muitos homens não estuprem e muitas mulheres nunca sejam vítimas de estupro.
Este ciclo de medo é o legado mais sinistro do sistema patriarcal que desaguou nisso que temos hoje: um sistema altamente misógino.
A cada ONZE SEGUNDOS uma mulher sofre algum tipo de violência neste país.
E estes são dados oficiais que não consideram os casos em que as vítimas morrem ou, se sobrevivem, não contam o crime que sofreram para ninguém – ou porque conhecem seu agressor (parentes, amigos e conhecidos) ou porque são seus parceiros (permanentes ou eventuais) ou, ainda, porque temem pela própria vida e pela de seus familiares.
Consta que apenas 35% dos casos reais são reportados como crimes.
Muitas mulheres escondem seu martírio, principalmente, porque tem consciência de que sua acusação poderá redundar em mais violência contra si, fora os julgamentos e comentários maldosos que se tornarão seu segundo suplício.
Ademais, carregarão a amarga sensação de que poderiam ter evitado a agressão se: tivessem mantido distância; vestissem-se de outra forma; falassem outras coisas; comportassem-se de outra maneira; percebessem o perigo eminente; etc. etc.
Só para lembrar: a ONU constata que UMA EM CADA CINCO MULHERES se tornará vítima de estupro ou de tentativa de estupro durante a vida.
Pois bem. Vale, então, anotar em letras garrafais o que vou registrar:
Nada ou ninguém será capaz de impedir um criminoso de praticar qualquer barbaridade que já tenha premeditado se a sociedade fornecer espaço para tanto.
A única coisa capaz de coibir este tipo de ação será a consciência coletiva (alcançando todos os gêneros) de que a banalização do estupro existe – de fato – sem que, muitas vezes, as pessoas sequer se deem conta de que o fazem.
Seja condenando a vítima, seja se alienando da experiência como algo totalmente ‘fora de si’. Conceber tal selvageria como algo ‘fora da normalidade’ é negar a responsabilidade social que nos cabe ao carregarmos esta violência potencial dentro de nossas próprias e cotidianas vivências.
Por detrás de quem ataca a mulher martirizada – duvidando de sua versão, colocando sob suspeita seus hábitos e suas condutas ou, ainda, defendendo o violador – encontra-se um estuprador em potencial.
Pois muitas mulheres que ouvi, ainda que anos depois de sofrerem tais violências, permanecem enfrentando a síndrome conhecida como estresse pós-traumático. Várias necessitam serem acompanhadas a todos os lugares, inclusive banheiros, e não conseguem trabalhar e nem sair de casa sozinhas. Preocupam-se de maneira neurotizada com as roupas que usam questionando-se sempre se não estão passando uma impressão errada.
Também relatam que, quando decidem denunciar, durante os depoimentos e/ou julgamentos, sentem-se julgadas por questões do tipo: Por que estava naquele lugar? Por que não fugiu de lá? Que roupas usava? Sentia atração pelo(s) acusado(s)? Costumava praticar sexo violento ou grupal?
Mesmo as evidências apresentadas por DNA, reconhecidas como prova fulminante, parecem indiferentes tanto para o estuprador quanto para os detratores das vítimas uma vez que estes seguem, muitas vezes, desqualificando-as e humilhando-as.
Falta ainda muito para que a sociedade brasileira trate de maneira justa mulheres vítimas destas monstruosidades. Todos os dias. Muitas vezes. Não existem mais desculpas para que estes crimes continuem acontecendo de forma impune na enorme maioria dos casos.
E repita sem pestanejar:
Basta de violência contra mulheres neste país!
E, se desejar, envie seus comentários para psicologaheloisalima@gmail.com
