QUANDO PARTE DO MUNDO É O ABUTRE

Imagem Movimento Abutre

“Tô viajando em loucos descaminhos
Como uma gota d’água num absinto.
Sem árvores, sem pouso, sem um ninho,
Sou pássaro de um mundo indistinto.

O sol cai dentro de mim.
Eu finjo que sou seu abrigo.
A dor ri nos trilhos sem fim.
Não tenho noção de perigo.”

In: Labirinto – de Vitor Ramil

Cada vez mais desacreditada no sul global, a profissão de jornalista – anteriormente considerada um símbolo da liberdade de expressão – nunca esteve tão desprestigiada, ainda que, para nossa sorte, sobrevivam poucos, mas verdadeiros e abnegados heróis, que insistem em mostrar verdades ‘indigestas’.

Diante de uma sociedade repleta de desinformação ou de falsas informações propositalmente veiculadas, a captação e reprodução de “mensagens” se tornaram o centro de todas as estratégias econômicas e políticas, onde os meios de comunicação e seus agentes ficam, cada vez mais, presos ao maniqueísmo dos donos da manipulação midiática.

Pense: o jornalista mantém hoje o mesmo poder que antes lhe era atribuído, quando desvelava, denunciava e registrava o que de fato via e pensava, independente do seu empregador?

Aparentemente, a crise que esta e outras profissões enfrentam não se limita apenas à ética e às questões sociais. O problema é muito mais profundo.

O desenvolvimento tecnológico que afetou toda a atividade jornalística, transfigurou as relações dos jornalistas com suas fontes, assim como com seus leitores – exatamente no momento onde qualquer pessoa pode tornar-se seu próprio editor-chefe ou o correspondente especial de uma página virtual. Assim, os limites éticos da profissão extinguiram-se.

Atualmente é preciso muita coragem para se manter independente e fiel a um conjunto mínimo de valores. Desprendimento, autonomia e liberdade não garantem mais a sobrevivência de ninguém, convenhamos.

Mas posso afirmar que houve um tempo em que garantiam, exatamente pela verdadeira humanidade que imprimiam à notícia que era exposta.

A emocionante história a seguir conta como uma imagem premiada e mundialmente famosa levou seu autor do mais absoluto e triunfal sucesso à terrível decisão de cruzar a linha entre a vida e a morte. 

Kevin Carter nasceu em 13 de setembro de 1960 em Johannesburgo, África do Sul. Como membro de uma família de imigrantes ingleses, passou a juventude dentro de uma confortável e protegida área designada apenas para brancos naquele país. Depois de terminar o colegial, Kevin abandonou os estudos para se tornar farmacêutico quando, em seguida, foi convocado para o exército.

Neste período, em 1980, ele presenciou uma confusão envolvendo um garçom negro ofendido injustamente por um cliente branco. Resolveu sair em defesa do rapaz e acabou sendo brutalmente espancado pelo grupo de soldados que se juntou ao agressor.

Pouco depois, em 1983, Kevin Carter testemunhou o bombardeio de uma igreja em Pretória, também na África e, a partir de então, decidiu se tornar um fotógrafo de notícias. Em seguida começou a trabalhar para um jornal local, o Johannesburg Star, que era especializado em expor a crueldade do Apartheid (política de limitação dos direitos da população negra na África do Sul). Lembrando que a maioria absoluta da população africana era (e ainda é) formada por negros contra os 9,5% de brancos.

Depois de um tempo fotografando estes horrores passou a fazer parte do famoso Clube do Bangue-Bangue, nome dado ao grupo dos quatro fotógrafos que revelavam ao mundo a brutalidade do Apartheid e atuavam dentro das áreas urbanas das periferias da África do Sul (os townships), miseráveis e subdesenvolvidas que, sob este regime, eram habitadas pela população que não fosse branca, em especial africanos negros e mulatos, mas também indianos da classe trabalhadora.

Kevin foi o primeiro fotojornalista que registrou a execução pública de um homem negro queimado. As imagens chocaram a sociedade e causaram uma enorme indignação mundo afora. Isto criou sentimentos públicos de condenação ao Apartheid. Após a divulgação das primeiras fotos pela mídia, Carter disse:  “Fiquei chocado com o que estavam fazendo. Fiquei chocado com o que eu fiz. Mas quando as pessoas começaram a falar sobre estas imagens… então eu senti que minhas ações não eram ruins. Eu era uma testemunha do horror que estava acontecendo e não era mesmo uma má ideia denunciá-lo“.

O trabalho dele e dos demais membros do clube destacou-se durante a transição do regime de apartheid para o governo de Nelson Mandela, entre os anos de 1990 e 1994 – ano em que Kevin ganhou o Prêmio Pulitzer, que é uma honraria norte-americana concedida às figuras da área do jornalismo.

A fotografia vencedora de sua autoria buscava retratar, em 1993, a miséria no Sudão. Nela um garotinho africano que parecia estar agonizando, esquálido, arrasta-se pelo chão enquanto era observado por um abutre. A imagem foi destaque do The New York Times na edição de março de 1993 e teve uma enorme repercussão mundial tamanha comoção provocada.

Importante ressaltar que a fome neste país arrasado por uma guerra, que teve como finalidade suas reservas de petróleo, matou mais de 600 mil pessoas apenas em 1993.

Muito criticado por não haver ‘ajudado’ a criança naquele momento, o jovem foi chamado de ‘o outro urubu da foto’ por diversas pessoas e meios de comunicação que nunca tiveram coragem para dar visibilidade às dores humanas como suas fotos faziam.

Foi João Silva, seu companheiro do clube dos fotógrafos, que contou o que aconteceu com Kevin quando este se sentou próximo a uma árvore logo após tirar a fatídica foto e espantar o animal que observava a criança: “ascendeu um cigarro, falou com Deus e chorou. Depois disso ficou deprimido e dizia que só queria abraçar a filha.” Em seguida subiu na aeronave da ONU que estacionaria há poucos metros dali por apenas 30 minutos.

Carter foi festejado por todos que, ao ouvirem sobre sua reputação e fama, apareceriam para lhe pedir autógrafos. Os editores de fotos nas principais revistas queriam conhecer o novo sucesso midiático, ainda que este, invariavelmente, se apresentasse vestido com seus jeans e camisetas negras, com as pulseiras tribais e o brinco de diamantes, com os olhos cansados ​​de guerra e dos contos das linhas de frente da nova África do Sul de Nelson Mandela .

Carter, finalmente, assinou com Sygma, uma agência de imagem de prestígio que representava 200 dos melhores fotojornalistas do mundo. “Pode ser um grande negócio“, afirmou a diretora, Eliane Laffont. “É muito difícil conseguir, mas Kevin é um dos poucos que realmente sabem fazer o melhor“. As mulheres se apaixonavam por ele e todos queriam ouvir o que ele tinha a dizer.

Mas, no fundo, o que o atingia de verdade eram as críticas e julgamentos que partiam de quem, no fundo, se incomodavam em ver a miséria humana e as atrocidades vividas por tanta gente. Desta forma Kevin finalmente foi consumido por uma profunda depressão.

E, então, numa tarde do dia 27 de julho de 1994, ele estacionou sua caminhonete diante do Rio Braamfontein Spruit, nos arredores da sua cidade natal, localizado dentro de um parque onde, quando criança, gostava de brincar. Utilizando-se de uma mangueira de jardim, ligou o escapamento do motor ao interior do carro e fechou a janela. Enquanto respirava o gás carbônico exalado, ia escrevendo num papel. Sua dor finalmente chegara ao fim.

Aos 33 anos de idade e apenas dois meses depois de receber a homenagem que o tornou conhecido mundialmente, o jovem fotógrafo cometeu suicídio, deixando o bilhete com as seguintes palavras:

Estou deprimido, sem telefone, sem dinheiro para pagar a conta, sem dinheiro para ajudar no sustento da minha criança, sem dinheiro para pagar as dívidas, sem dinheiro! Sou assombrado pelas vívidas memórias de mortes e cadáveres, de raiva e dor, de crianças feridas e esfomeadas, de loucos que assassinam alegremente, alguns deles polícias (…). A dor de viver ultrapassa a alegria ao ponto em que esta deixa de existir. Vou partir para me juntar ao Ken – se eu tiver essa sorte.”

Mesmo assim, seu funeral foi acompanhado por diversas manifestações de admiração, carinho e respeito demonstrados, principalmente, através das cartas enviadas por crianças e que foram lidas durante a cerimônia registrando palavras como: “se eu for apanhado numa situação difícil, vou lembrar-me da sua foto e tentar ultrapassar a situação“; “Até agora fui uma pessoa egoísta“; “Eu tiraria a foto com as mãos a tremer”; etc.

Anos depois de sua morte o periódico espanhol El Mondo descobriu que a criança da foto, um menino chamado Kong Nyong, sobreviveu ao abutre.

Infelizmente Kevin não teve tempo de compreender a dimensão daquilo que se tornou seu fardo mais insuportável: enxergar e mostrar a vida do jeito que ela é. Sendo o que se é. Sem lentes preparadas para desfocar qualquer realidade. 

A filha de Kevin, Megan, fez a seguinte observação sobre a premiada fotografia de seu pai:  “Eu vejo uma criança em sofrimento como o meu pai. E o resto do mundo é o abutre.

Sua incrível jornada foi retratada em 2010, pelo longa-metragem The Bang Bang Club: https://www.youtube.com/watch?v=3lkYBDbpdjg

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