DESCONTRUINDO FARSAS

Imagem Movimento Tranças

“Já é tarde, tudo está certo,
Cada coisa posta em seu lugar.
Filho dorme, ela arruma o uniforme,
Tudo pronto pra quando despertar.

 O ensejo a fez tão prendada,
Ela foi educada pra cuidar e servir.
De costume, esquecia-se dela,
Sempre a última a sair.

In: Desconstruindo Amélia – de Pitty

Você já pensou no quanto nos tornamos craques em esconder dores e mazelas? Nós, as mulheres, claro.

Penso em todas as mulheres que um dia imaginaram fazer uma escolha que as tornaria felizes para sempre e para a qual se guardariam imaculadas. Ainda que não fossem jovens ou inexperientes. Haveria de acontecer o encontro certo que faria de todos os outros meros cursinhos preparatórios.

A alma gêmea. A metade da laranja. A tampa da panela. O chinelo macio para o pé cansado. E, a partir disto, cessariam todas as buscas e os barcos retornariam ao cais de onde nunca mais partiriam à procura de qualquer tipo de idealização.

Mas na vida real, bem sabemos, não cabem grandes ilusões, mudanças ou correções de última hora – como nas novelas, nos filmes e nos contos de fadas. 

Não podemos mudar a cena que não combina com o que desejamos, nem alterar o roteiro de uma trajetória dada. Ela simplesmente acontece e, no momento seguinte, já se tornou página virada.

Daí o decantado ‘dedo podre’ que tantas mulheres imaginam possuir – assim como todas nós que ‘teimamos em não acertar’ nas escolhas românticas.

O problema é que ninguém nunca nos contou a verdade.

Muitas de nós – a maioria esmagadora, para ser bastante honesta – costumam esconder as incongruências dos enredos amorosos que criamos, em nome de salvaguardar aquilo que acreditam ser seu único e inexpugnável destino: o de manter-se dentro de uma convivência – custe o que custar!

A verdade é que aprendemos desde cedo – prematuramente demais – a sublimar nossas verdadeiras dores para não parecermos nem frágeis demais, nem vulneráveis demais.

Como se sentir medo, angústia ou dor fosse indício inequívoco de fraqueza de caráter ou ausência de força e de personalidade.

Certamente é por isto que os homens têm tanto pavor de demonstrar suas aflições. Imaginam que isto terá o poder devastador de torná-los mais débeis do que humanamente já são. Como são todos os seres viventes. Como sempre serão todos os mortais.

Na mesma medida, este é o motivo que faz as mulheres esconderem seus infortúnios: afinal, aprendemos que o certo é ocultá-los do resto do mundo.

Por conta disto é que muitas pessoas demonstram surpresa e uma enorme estranheza diante do fato de que tantos casamentos, justamente aqueles que pareciam muito bons e caminhando ‘muito bem, obrigada’, apresentem um ‘inesperado’ desfecho.

Cansei de ver passarem diante de mim centenas de mulheres que nem sequer consideravam a possibilidade de contar um bocadinho que fosse das amarguras que viviam para seus filhos, para suas filhas (para que não reproduzam o mesmo caminho), para seus pais, para sua mãe (que também não lhes contou coisa alguma), seus amigos, suas amigas. Nada. Para ninguém.

Não aceitam porque temem o risco de criar uma espécie de compromisso já que, verbalizando seus conflitos, teriam de tomar alguma providência. Uma atitude. Imaginam que isto lhes seja cobrado. E elas não podem ou não desejam fazer nada. Talvez um dia. Quem sabe?

Quantos casamentos se passando por meras fachadas repletas de rachaduras e de pinturas mal-acabadas? Sem qualquer pio, nenhuma queixa aparente de nenhuma das partes?

Por que tantos casais sobrevivem juntos embora a relação, há tempos, já tenha se deteriorado?

Prestígio social, medo da solidão, dependência emocional ou econômica, são apenas algumas das razões. A ponta do iceberg. Esses casamentos transformam-se numa dolorosa e inútil experiência tendo em vista que o distanciamento físico e emocional se configurou no lugar de procurarem ajuda para reforçar os laços que ainda os uniam. Permitiram que mágoas e ressentimentos se acumulassem contaminando a convivência.

Aliás, nos casamentos costumamos agir assim: vocês fingem que estão bem casados e felizes e nós fingimos acreditar. E nas bodas de prata celebraremos juntos a grande farsa.

É claro que não me refiro a todos os casamentos. Mas creio falar da maioria deles. Dos que duram tempo demais para um amor, uma atração e um companheirismo que, há muito, deixaram de existir.

O desacerto tem início justamente no pacto de silêncio geral e irrestrito que historicamente se estabeleceu entre as mulheres que, deste modo, ensinam às gerações seguintes a fórmula do engodo, nos tornando, ao mesmo tempo, cúmplices e reféns desta atroz armadilha.

Tenho pessoas muito próximas, amigas e primas, estas lá do Nordeste, Ceará, que nas conversas animadas em grupos femininos, se divertem diante daquela que jura ainda não ter sido traída pelo marido. Parece existir um certo orgulho de confirmar que sabem, que resistem e que continuam ali, firmes, ainda que enganadas.

Diferente de uma querida tia, da mesma família e região, que vivia a certeza de um amor único e especial com seu marido há mais de 40 anos. Andavam sempre de mãos dadas, chamando-se mutuamente de meu amor. Até que um dia recebeu uma carta anônima dando conta de que meu tio, aquele homem carinhoso e super atencioso, vivia há anos uma vida dupla, dormindo, inclusive, quase que diariamente com a vizinha alguns anos mais jovem e amiga de suas próprias filhas. Por anos aguardara a esposa pegar no sono dos juntos e tranquilos para atravessar a rua. Logo depois descobriu-se ter sido enviada pela própria amante.

A tragédia desta história foi que minha tia, confirmada a história, desistiu imediatamente de viver. Parou de falar, de comer, de sair da cama, de tomar banho até que deixou de enxergar e andar. Definhou de tal maneira que nada do que seus filhos e filhas fizessem pôde ajudar. Meu tio, desesperado pela culpa, cuidou dela por todo o tempo que ainda viveu, a vizinha teve que se mudar e o desfecho se deu com a morte dela e a dele, um ano depois.

O silêncio definitivamente nos torna não somente vítimas, mas, sobretudo, corresponsáveis frente a perpetuação da violência contra a mulher que, sem dúvida, potencialmente envolverá nossas filhas, sobrinhas, netas, e amigas também.

Pense nisto antes de resolver fingir uma vida que não vive ou uma felicidade que não existe mais.

A psicanalista Beverly Engel, autora de ” Loving Him Without Lossing Yourself” (algo como: Amando-o Sem se Perder), chama esta mulher de Mulher Desaparecida – que é o que acontece quando as mulheres perdem a noção do que acreditam, do que representam, do que é importante para elas e do que as torna felizes apenas porque resolveram estar em um relacionamento.

Não importa quão bem-sucedidas, assertivas ou poderosas sejam algumas mulheres. No momento em que se envolvem com um homem elas começam a desistir de si mesmas – sua vida social, seu tempo sozinho, sua prática espiritual, suas crenças e valores” explica Engel. “Com o tempo, essas mulheres descobrem que fundiram suas vidas com as de seus parceiros até o ponto em que passam a não ter uma vida para a qual voltar quando e se a relação terminar.”

Se conversássemos mais sobre nossos desgostos; se escancarássemos nossas feridas como chaga que arde porque sangramos quando nos machucam; se pedíssemos auxílio diante do primeiro sinal de perigo, ensinaríamos aos mais jovens – homens e mulheres – sobre os mais profundos e verdadeiros sentimentos humanos.

Ensinaríamos também que tanto a honestidade quanto a lealdade são qualidades indispensáveis para se criar o novo indispensável caminho que precisa ser finalmente trilhado para que consigamos nos unirmos e nos desunirmos sem levar ou deixar tantos pedaços.

Mas, ainda assim, fico muito esperançosa e feliz por saber que existem (e resistem) mulheres sensíveis criando filhos melhores que serão capazes de tornar este mundo muito mais amoroso e fraterno do que é hoje.

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