“Hoje eu acordei
Com uma vontade danada
De mandar flores ao delegado,
De bater na porta do vizinho,
E desejar bom dia.
De beijar o português
Da padaria.”
In: Telegrama – de Zeca Balero
Tudo aquilo que as pessoas mais odeiam nos outros é, justamente, o que elas mais temem enxergar dentro de si.
Desta forma, o ‘outro’ é percebido como uma tela na qual projetamos nossas partes indesejadas. Algo como: Eu não sou este ser humano terrível; você é.
O fenômeno conhecido como projeção foi um termo cunhado pelo psicanalista Sigmund Freud para descrever nossa tendência de rejeitar o que não gostamos em nós mesmos.
Podemos, assim, entender a projeção como uma resposta à nossa necessidade de sermos ‘bons e aceitáveis’, jogando toda a nossa ‘desumanidade’ em alguém que poderemos externamente ‘atacar’.
Desenvolvemos esse método de negar o que entendemos ser ruim e que pode nos colocar sob o risco de sermos rejeitados, reprimindo traços que nos disseram ou sugeriram serem moralmente reprováveis – e empregando nossos ódio e julgamento em relação aos outros.
É assim que muitas pessoas acreditam que se livram de aspectos indesejáveis. Este recurso, no entanto, apenas perpetua a repressão das nossas questões mais profundas, o que pode nos levar a muitos problemas de saúde mental.
Você se lembra do caso ocorrido dentro de um condomínio de luxo, onde um idoso matou um casal de vizinhos após uma tola discussão acerca de um barulho para, em seguida, suicidar-se?
Tudo começou com um pequeno atrito. Um grave ruído na comunicação daquelas pessoas que, simplesmente, queriam seguir com suas vidas.
Os jornalistas tentaram encontrar explicações “científicas” para o triste episódio. Os vizinhos, justificativas racionais. Os amigos, razões emocionais.
O jovem casal, do andar de cima, aparentemente, guardava projetos importantes para os muitos anos de vida que ainda tinha diante de si. O mais significativo, certamente, seria acompanhar o crescimento da filha ainda pequena.
O casal de meia idade, do andar de baixo, certamente mais combalido, desejava viver os anos restantes em paz e harmonia. E, com alguma sorte, plenos de alegria.
Portanto, como disse alguém, ‘essa conta não fecha‘.
O que faltou para que aqueles cinco minutos de raiva não transformassem a vida de todos numa tragédia? O que não foi dito, ouvido ou compreendido por eles e pelos que lhes cercavam?
Certamente, a morte dos três encerrou a possibilidade de alcançar respostas plausíveis a estas incômodas indagações produzindo a dolorosa notícia que, por semanas, preencheu manchetes sanguinárias e frias.
Por outro lado, no entanto, a tragédia poderia nos abrir a chance de reavaliarmos nossas próprias atitudes frente às dezenas de conflitos com os quais diuturnamente nos deparamos: na sala de casa, no elevador do trabalho, no trânsito, na fila, no mercado, no banco, na loja, no hospital, em todos os cantos.
Lidamos, diariamente, com os mais diferentes tipos de pessoas e humores.
Gente sofrendo coisas que a gente sequer pressente. Gente como a gente, parada na frente da gente, olhando amedrontada, desconfiando, se escondendo. Como a gente – padecendo.
Ideal seria que jamais nos confrontássemos com aqueles nos quais não nos foi dado confiar, porque sabemos que confiança tem a ver com tempo, contato, amizade e, principalmente, intimidade. Quer dizer: dá muito ‘mais trabalho’ criar laços de confiança. Aparentemente sai ‘mais em conta’ mantermos as pessoas afastadas e apartadas de nossas vidas.
E se, cinco minutos antes de nos antagonizarmos, tentássemos simplesmente nos ‘colocarmos’ no lugar do outro? Sem dúvida, entenderíamos os sentimentos que, mesmo sem querer, poderíamos estar provocando.
Nem sempre o que é correto é algo que se encontra em oposição ao que é errado.
Existem infinitos modos de ver a mesma coisa. Diferentes possibilidades de interpretações. Nuances, detalhes, cores e sons que escapam aos sentidos mais aguçados.
Porque insistimos em querer que todos contemplem as coisas da mesma forma que a gente?
A produção irrestrita do eu nos leva ao meu. Individualista e solitário meu edificado pelo egoísta e insensível eu.
E quem pode afirmar, com toda a convicção, de que lado está o certo e onde se esconde o errado?
Somos mestres em observação e julgamento sumários. E muito pouco escolados na delicada trilha da tolerância.
Mas, se apenas uma vez, experimentássemos o que a leveza que a falta de certeza nas coisas pode proporcionar, não nos deixaríamos cegar pela cólera insana do (vão) convencimento que entorpece nossos mais nobres (e necessários) sentimentos humanos.
Pediríamos com muita humildade, quem sabe, a mediação de um amigo afetuoso ou, ainda, daquele parente compreensivo. Talvez até do vizinho gentil capaz de nos ajudar a recriar a ponte fraterna que nossos gestos rotineiros, abruptos e pouco amistosos destroem sem que sequer nos demos conta disso.
E, então, o tal silêncio não seria realizado desta forma tão brutal e irreversível.
Como o que, dentre outras tragédias, envolveu dois irmãos, que também eram sócios em uma concessionária, quando o mais velho foi assassinado pelo mais novo, no final da ‘festa de confraternização’ da empresa.
Triste final para ódios recalcitrantes que jamais são assumidos e, desta forma, tratados.
E não se esqueça: todos nós nascemos com a capacidade atuarmos inspirados pela raiva ou pela compaixão. Seja qual for a tendência adotada, esta vai requer escolhas conscientes por parte dos indivíduos, das famílias, das comunidades e da nossa cultura em geral. A chave para superar o ódio é a solidariedade: em casa, nas escolas e na comunidade.
E saiba que o melhor antídoto para o ódio é a compaixão – tanto pelos outros quanto por nós mesmos. Se considerarmos parte de nós mesmos inaceitáveis, tenderemos a atacar outras pessoas para nos defendermos da ameaça. Se estivermos bem, veremos os comportamentos dos outros como algo exclusivo ‘deles’ e poderemos responder com compaixão. Se eu mantiver o ódio em meu coração, terei que me odiar também. Somente quando aprendemos a nos manter com compaixão é que conseguiremos demonstrar isso em relação aos demais.
Enfrentar o medo de ser vulnerável e totalmente humano é o que nos permite conectar, sentir e, finalmente, amar. Em outras palavras, a compaixão pelos outros é o verdadeiro contexto onde a cura pode nos alcançar.
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