“Tem gente que está do mesmo lado que você
Mas deveria estar do lado de lá.
Tem gente que machuca os outros,
Tem gente que não sabe amar.
Tem gente enganando a gente,
Veja a nossa vida como está.
Mas eu sei que um dia a gente aprende.
Se você quiser alguém em quem confiar,
Confie em si mesmo.
Quem acredita sempre alcança!”
In: Mais Uma Vez – Renato Russo
Já faz tempo que penso numa razão que justifique a absoluta ausência de estudos ou levantamentos envolvendo comportamentos desumanos praticados por pessoas aparentemente humanas.
Pessoas que, de longe, parecem normais, bacanas e até bondosas, e que apenas quem chega muito perto consegue enxergá-las na sua real e monstruosa dimensão.
Me vem à memória uma matéria mostrada há alguns anos, exaltando o arrojo e o empreendedorismo do dono das Casas Bahia, Samuel Klein.
Ali, ele aparecia dizendo, dentre outras coisas, que seu enorme patrimônio se formara por conta da confiança que depositara nos nordestinos – motivo pelo qual os teria homenageado escolhendo o nome da sua empresa. Segundo ele, estes clientes jamais atrasavam suas prestações por serem, por natureza, muito honestos.
Parecia uma explicação exageradamente pueril para justificar uma das maiores fortunas do país.
Nunca mais pensei no assunto até que, recentemente, foi amplamente denunciado o verdadeiro ‘Império do Abuso sexual’ promovido por um dos filhos desta família, Saul Klein. Pouco depois, escancarou-se as portas do inferno. O patriarca Samuel, aquele que ‘respeitava’ nordestinos e nordestinas (será?) era dono de uma agenda impiedosa de incontáveis abusos contra crianças que remontam, pelo menos, três décadas de puro terror e maldades.
O horror que sobressai destas terríveis histórias, e de milhares de outras, é constatar como pessoas muito ricas – comprovadamente pedófilos e abusadores de mulheres – podem ser apresentadas ao mundo como criaturas simplesmente “excêntricas”.
No caso da ‘cândida’ Casas Bahia, as meninas eram recrutadas por funcionárias do empresário, o que significa que os crimes ocorriam sob dos olhos de centenas de pessoas que escolheram não fazer nada, mesmo diante de garotinhas de 9 anos de idade.
É óbvio que o poder econômico destes criminosos afeta os desfechos dos casos. As pessoas mais simples – ou nem tanto – entendem que qualquer denúncia pode significar o fim de suas carreiras ou vidas.
Esta inaceitável condição também interfere nestas sinistras ocorrências. As pessoas, mesmo quando entendem que algo está muito errado, pensam: ‘Ah, mas ele é rico, não adianta mesmo fazer nada…’
Da mesma forma permanecem sendo tratados os inúmeros indícios apontando para o bilionário Bill Gates, aquele com cara de nerd abestado, que era muito ligado ao notório aliciador de meninas menores de 18 anos, Jeffrey Epstein, que durante décadas, sem enfrentar o menor problema, as ‘oferecia’ a nojentos políticos, artistas, pessoas ricas e famosas
Também frequentavam suas mansões e ilhas paradisíacas lotadas de meninas pobres enganadas, recrutadas como “massagistas”: Donald Trump, Bill Clinton, ‘príncipe’ Andrew, Kevin Spacey, Woody Allen, professores catedráticos de universidades famosas, bilionários magnatas de diversas empresas conhecidas.
Exemplos horrorosos como estes, envolvendo pessoas ‘poderosas’, psicopatas vivendo livremente entre a gente, não têm fim e pululam dentro da nossa sociedade formada por tais pessoas de bem.
No Brasil anualmente registra 500 mil casos de exploração sexual contra crianças e adolescentes. São mais de 1.369 por dia. E estimativas apontam que apenas 10% dos casos sejam notificados às autoridades. Então, este número aterrorizante é muito maior.
Desta forma, o Brasil alcançou o inglório e desprezível 2º lugar no ranking mundial de exploração sexual de crianças e adolescentes. Nosso país perde apenas para a Tailândia.
O que ninguém fala é que o abuso e a violência provocam traumas que, no fundo, dificilmente serão superados. Principalmente se considerarmos uma comunidade como a nossa, onde mulheres não são reconhecidas em seus direitos, são classificadas como inferiores e estão sendo obrigadas a gestar e criar crianças frutos de estupros.
O fato é que nós, mulheres, vivemos torcendo para que, em algum momento, uma flor de lótus nasça de todo este lodo.
É possível que isto passe pela necessidade de uma exploração cuidadosa e exaustiva da crueldade humana. E estes episódios, cada vez mais frequentes, revelam que atos de violência e crueldade só acontecem porque falhamos em apreciar e avaliar com bastante seriedade a humanidade dos outros.
Principalmente daqueles que se colocam em posições de poder.
Algumas pesquisas revelaram que os mais aguerridos escravocratas viam os seres humanos que subjugavam como “criaturas destituídas de almas, a serem classificadas entre as bestas brutas devendo serem tratadas desta forma.”
Ou como no Holocausto, quando a ausência de problemas de consciência diante do assassinato de outros seres humanos era sustentada pela ideia de que as vítimas não mereciam seu status de humanidade – para que o assassinato sistemático ocorresse de maneira silenciosa e ordeira.
Por conta disto, os nazistas se utilizavam de eufemismos burocráticos como “transferência” e “seleção” para esconder as diferentes formas com as quais perpetravam seus odiosos crimes.
Mesmo no século passado, há pouquíssimo tempo atrás se considerarmos a idade da humanidade sobre este planeta, havia zoológicos humanos, onde os africanos eram colocados em recintos para os europeus os observassem feito animais exóticos.
Sabemos que os psicopatas – muitos dos quais parecem demais com aquele tio bonachão engraçado, aquele amigo inteligente e gentil ou aquela cordial vizinha que faz e oferece docinhos maravilhosos – tratam suas vítimas apenas como meios para seus fins perversos.
Os pobres são ridicularizados como idiotas perigosos. Os transeuntes olham os sem-teto como se fossem obstáculos transparentes. Os que sofrem de demência são representados na mídia como zumbis.
A tese de que ver os outros como objetos ou animais irracionais, desprovidos de sentimentos, possibilita nossa pior conduta e parece explicar muita coisa.
Na manhã seguinte às “festas de limpeza”, membros da SA austríaca, trabalhando a partir de listas, identificavam suas vítimas e as forçavam a se ajoelhar e limpar as ruas com escovas. Esta foi uma humilhação ritualística. Muitas vezes médicos, advogados ou outros profissionais, viam-se de joelhos realizando trabalhos braçais na frente de multidões zombeteiras. Alguns autores lembram-se do espetáculo das “festas de esfrega” como uma mera “diversão para a população austríaca”.
Os judeus forçados a esfregar as ruas — para não mencionar aqueles submetidos a degradações muito piores — não eram considerados humanos. E a multidão se juntava porque queria vê-los sofrer. A lógica dessa brutalidade é a lógica da metáfora: afirmar uma semelhança entre duas coisas diferentes só tem poder à luz dessa diferença.
No fundo, porém, podemos reconhecer que o sadismo de tratar os seres humanos como vermes reside paradoxalmente no reconhecimento inconfesso de que eles não são.
Os estupradores muito ricos e cheios de poder por conta disto, sabem que suas presas tem a humanidade que eles não possuem.
Logo, é possível dizer que, diferente do que o velho Samuel afirmava sentir pelos pobres nordestinos que em suas lojas compravam, o que seu submundo ressaltava era o mais profundo desprezo pela magnífica natureza humana.
Enfim, podemos concluir que os humanos e os psicopatas são absolutamente diferentes. E que precisamos estudar e nos aprofundar muito neste tema, a fim de que não percamos a luta contra tamanho mal.
Acompanhe os novos textos através do: http://www.facebook.com/aheloisalima
E, se desejar, envie seus comentários para: psicologaheloisalima@gmail.com