O QUE NOSSAS SOMBRAS ESCONDEM (DEPOIMENTO)

Imagem Movimento Abuso 1

“Pra que dissimular?
Se ela me segue aonde quer que eu vá?
Melhor encarar
E aprender com ela a caminhar.
Não vou mais negar,
Por todo caminho, minha sombra está

Eu quero saber me querer,
Com toda a beleza e abominação
Que há em mim.”

In: A Sombra – de Pitty

Juliana foi uma das melhores amigas que tive na vida. E continua sendo. Estou contando esta história com sua autorização, evidentemente. Nossa amizade já foi tema de várias crônicas minhas e até de minha tese de mestrado. A única coisa que ela exige é a mudança dos nomes. O meu e o dela. E assim sigo fazendo.

Na década de 1990, residimos juntas em Barcelona por mais de dois anos. Naquela época, era bastante comum que jovens casais amigos, principalmente os estrangeiros, se juntassem para dividir o aluguel de uma mesma casa, com cada par ocupando um quarto.

Um amigo brasileiro nos apresentou. E, com o tempo, fomos estreitando nossos laços de ternura e de amizade. Juliana com o namorado, um artista plástico cinco anos mais jovem e eu recém-casada com um médico que cursava sua primeira especialização. 

Assim que a vi, pensei: “— Até que enfim uma pessoa bacana de se conhecer neste país!”.

Pouco tempo depois, ela me contou que iria se submeter a uma cirurgia para retirada de um câncer que acabara de ser diagnosticado. Confesso que estranhei muito que o fato tivesse sido relatado como se parecesse uma simples extração dentária.

Mesmo assim, e investida de todo o meu espírito solidário, imediatamente me propus a acompanhá-la considerando inaceitável a decisão de uma amiga enfrentar tudo aquilo de maneira solitária.

Permaneci ao seu lado durante todo o processo de internação e cirurgia e o episódio fortaleceu ainda mais o apreço que tínhamos pela outra. Constatamos que uma adversidade tem o poder de fazer uma amizade florescer rapidamente. E foi assim que aconteceu com a gente.

Naquela época, Juliana começava um intenso processo de autodescoberta, através de uma psicoterapia que, no decorrer das sessões, revelou-lhe uma dolorosa passagem que a marcara durante toda a juventude e da qual aparentemente esquecera: ao completar doze anos de idade seu pai, sem qualquer razão, simplesmente abandonou a família, desaparecendo de sua vida.

Tempos depois, todos tomaram conhecimento de que ele já vivia com outra mulher em um outro país. Isto deixou Juliana profundamente abalada, numa mistura muito amarga de tristeza e abandono que a acompanharia por muito tempo.

Penso que, por consta disto, tenha passado anos se relacionando com homens bem mais jovens os quais, de alguma forma, tentava controlar, talvez numa tentativa de evitar o tão temido abandono experimentado na infância.

O tempo passou e eu, já de volta ao Brasil, soube que Juliana havia se separado do jovem artista e que, tempos depois, passara a namorar um homem com idade próxima a sua e com quem finalmente decidira formar uma família, uma vez em que ambos desejavam filhos.

Quando retornei à Europa, três anos depois, fui logo visitá-la, sendo surpreendida pela notícia de que ela estava com um novo tumor que também deveria ser imediatamente retirado.

Juliana, então, relatou que seu processo psicoterapêutico acabara por lhe desvendar um mistério íntimo e doloroso. Uma sensação antiga que se confundia, às vezes, com fantasias juvenis, acabara por confirmar-se quando ela descobriu que o homem que até aquela época chamava de pai não era seu pai biológico.

Transtornada, viajou até a cidade onde morava sua mãe e lhe exigiu a verdade. Surpresa, ouviu a confirmação de sua suspeita. Soube, também, que seu verdadeiro pai, assim que soubera da gravidez da mãe, desaparecera e o pai ‘postiço’ resolvera tomar seu lugar na paternidade.

Juliana, com toda sua perplexidade, passou a sentir muita raiva da mãe e a culpá-la por todos os desacertos que incluíam o aparecimento de seus tumores. Depois de algum tempo, e em meio a muita dor, foi procurando compreendê-la ao mesmo tempo em que tentava remover toda a frustração que sentia. Afinal, a mãe também fora vítima de uma genitora tirana e insensível e que a tratava de maneira distante e desprovida de afeto.

Na medida em que sua verdadeira história ia se revelando, o tumor aumentava, dando-lhe a nítida sensação de que havia uma relação direta e ‘palpável’ entre esses dois inquietantes e simultâneos eventos.

Nesse período, enquanto tentava compreender porque o homem que acreditava ser seu pai abandonara a família, seguiu relembrando pormenores do seu relacionamento com ele.

Foi aí que, drasticamente, uma luz insuportavelmente clara expôs o que se escondia por detrás das sombras.

Até que ela completasse doze anos, sua mãe trabalhara fora de casa e o homem que descobrira não ser seu pai biológico desenvolvia atividades profissionais que o mantinham mais tempo dentro da residência.

E foi durante uma conversa acerca de seu persistente medo de aranhas, dentro de uma sessão de terapia, que Juliana subitamente recordou-se de uma cena vivida aos seis anos de idade. Encontrava-se deitada no chão frio de uma adega, uma espécie de ‘cave’ da casa, e dali podia observar aranhas que se movimentavam pelas paredes. Foi quando lembrou-se que dos seis aos nove anos o padrasto sempre a convidava para descer até a tal adega onde passou a molestá-la.

A lembrança de tal vivência fez Juliana tremer como uma criança assustada e desprotegida e, assim, chorar compulsivamente. A partir de então, aos poucos, ela pode compreender muitas das dificuldades que vivera durante toda a vida, além das angústias e inseguranças que não sabia de onde vinham.

Nesta altura, ela recebeu um veredicto de seu médico: deveria submeter-se a uma nova cirurgia, pois, conforme o rastreamento, existia o risco da necessidade de uma histerectomia total.

Durante a viagem mais profunda que empreendera às profundezas de toda sua história pessoal parecia que, de algum modo, fora convocada a romper com uma espécie de “maldição transgeracional”, perdendo o útero e a capacidade de gerar os filhos que ela aparentemente tanto desejava.

Seu atual companheiro, numa atitude surpreendente para ela, resolveu ampará-la incondicionalmente. Ciente de todo o drama da companheira, acompanhou-a de perto oferecendo-lhe todo o carinho e cuidado que Juliana nunca havia provado em toda a sua vida.

No percurso das duas semanas que antecederam a cirurgia, chorou como nunca fizera ao sentir e procurar assimilar aqueles eventos de sua história.  Sentia-se insegura e frágil, mas em nenhum momento abandonou a convicção de lutar por sua saúde e por sua vida. A cirurgia foi realizada com sucesso e apenas uma pequena porção de seu útero precisou ser retirada.

Numa conversa recente, descobri que mesmo diante deste resultado positivo obtido na cirurgia, que já completou quatro anos, Juliana ainda não decidiu se deseja ou não ser mãe.

A diferença é que agora ela assume seu medo, sua memória e sua dor. Não faz mais pactos com o silêncio. Aprendeu a pedir o amor que tanto necessita e a cuidar de si mesma e de seu corpo sem negá-lo. Concebeu a própria verdade de forma digna e integrada.

E deste lado do oceano, torcendo por ela, desejo ardentemente que ela persista na luta pela vida, reencontre a alegria ainda muitas vezes e possa amar e caminhar mais segura por esse mundo afora.

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