“Também estou vivo, eu sei.
Mas porque posso sangrar.
E mesmo vendo que é escuro,
Dizer que o Sol vai brilhar.
Com/contra quem me dá duro,
Com o dedo na cara,
Me mandando calar.”
In: Meu Cordial Brasileiro – de Belchior
Você consegue imaginar quantas pessoas, nos últimos tempos, têm experimentado uma incômoda e persistente sensação de ansiedade misturada à uma insuportável prostração, ambas quase impossíveis de evitar?
Percebo, tanto em mim quanto nos outros, uma estranha dualidade entre a vontade de criar coisas novas e um enorme sentimento de imobilidade.
De alguma forma, seguimos todos com a sensação de estarmos perdendo nossas promissoras tendências, antes muito aguçadas, como o desejo de aprender novas habilidades como cantar, dançar, praticar atividades diferentes das quais estávamos habituados. Aliás, desfazermos hábitos recrudescidos.
Procurar viver novas e gratas experiências amorosas, então, tornou-se um verdadeiro martírio. Impraticável em tempos sombrios feito o nosso presente.
Estamos todos como a bailarina que perdeu o movimento das pernas, mas que, ainda assim, anseia pela oportunidade de dançar.
Penso no quanto as exigências doentias da vida nesta nossa sociedade atual, ou seja, numa sociedade comprometida até os dentes com as maiores perversões e psicopatias humanas, conseguem tolher, desde a infância, toda e qualquer forma de movimento inusitado e criativo – justamente por ser ele o emblema da nossa verdadeira e maravilhosa humanidade.
Muito perigosa, portanto.
Logo, estas relações sociais transformam crianças potencialmente vivazes e inventivas em fantoches com capacidades frágeis e reduzidas. Gente muito boa para ocupar o lugar previsível na linha de produção onde todos repetem os mesmos gestos e as mesmas noções, exibindo movimentos idênticos, monótonos e invariáveis, repisando juízos, valores, conceitos e pensamentos destituídos de qualquer análise crítica.
Os grupos sociais acolhem tais preceitos de maneira tácita e irrefletida e, desta forma, preconizam a silenciosa e enfadonha repetição como única alternativa para a produção humana.
Assistimos, então, a desvitalização do nosso vigor e clamor juvenil que podíamos carregar pela vida afora.
Somos compelidos a acreditar que este modo de ser é altamente produtivo e benéfico para o conjunto da sociedade.
Mas, evidentemente, não é. O que ele faz é reproduzir todas as doenças sociais.
Porque este jeito de existir nos oferece muito pouco das infinitas possibilidades que teríamos se não fôssemos tão aviltados e roubados no direito de fazer escolhas livres.
E, não. Não estou considerando aquela ínfima e improdutiva minoria que tem acesso a tudo o que é de bom e de melhor e que, consequentemente, tem uma infinidade de escolhas estéreis a fazer. E as faz, claro, com muito gosto.
Falo sobre gente como eu e você, querido leitor. Gente que ainda não se desumanizou o bastante a ponto de não sentir o desconforto representado pela reedição inútil de velhos modelos falidos de relações humanas e sociais.
A psicanálise nos ensina que copiamos todas as nossas conflituosas relações parentais. Mas somos obrigados a reproduzir os papéis que assistimos no decorrer da vida porque também não tivemos acesso ao aprendizado do grandioso e fundamental exercício da crítica. E muito menos o da emancipação.
E porque somos transformação contínua, passamos a vida lutando contra esta condição, cortando asas, subjugando desejos, calando vontades e escondendo anseios.
Eu proponho que, numa espécie de alegoria, reaprendamos a Dança de Shiva que, intuitivamente, dançávamos quando crianças.
Que resgatemos a prática onde uns prestam muita atenção nos outros, com excessivo desvelo e respeito. Conduzindo e sendo conduzido numa mesma direção.
Primeiro, porque esta ‘dança’ representa toda a potencialidade do dinamismo entre a natureza e os seres vivos. Segundo, porque sua finalidade é a de libertar todos da ilusão e da ignorância representada pelo individualismo – onde dançamos isolados.
Terceiro, porque indica que o espaço natural da dança se encontra no centro do universo – que reside no coração de cada um de nós.
Assim, este livre e magnífico movimento representaria o que de mais profundo ocorre dentro de nós e que vai em direção aos nossos semelhantes formando uma potente e invencível ciranda.
Por isso, os sentimentos infantis (muito importante de serem mantidos dentro da gente) são tão poderosos e comoventes. Refletem o que de mais puro e verdadeiro trazemos de nossa essência.
Afinal, é exatamente a vida em sociedade que vai corrompendo esta pedra bruta e autêntica. Vamos sendo lapidados pra nos tornarmos meras peças, infelizes fragmentos de uma engrenagem desumana e destituída de emoção.
Tudo em nome da nossa necessidade atávica de viver uma ilusória permanência, amiga íntima da monotonia e vizinha fraterna do comodismo.
Fingimos que nos sentimos livres, que temos esperanças no futuro, que acreditamos nas pessoas que nos são próximas e que nos dão o mínimo de amparo do qual acreditamos carecer.
Como disse o indiano Jiddu Krishnamurti: “Onde existe o medo, existe uma busca eterna por segurança”.
Esquecemos da nossa intrínseca capacidade de recriar
Então, precisamos nos atrever e retomar esta energia vital que de nós foi subtraída quando não tínhamos nenhuma condição de resistir. E, entendendo que energia traduz absolutamente toda a nossa capacidade de fazer acontecer, nos entregarmos, com força e alegria, a novos desafios e a conquistas originais.
Acordar o animal divino e sagrado que, neste momento, encontra-se adormecido dentro da maioria de nós.
Viver, afinal, tem tudo para ser uma experiência transformadora e maravilhosa. Desde que duvidemos desta aparente ordem que aí está para nos desestimular.
Se não puder trazer luz para a escuridão da sociedade em que vive, comece iluminando a sombra que existe dentro de você. Mas comece de alguma forma.
Procure transformar o que existe de errado, lutar e amar, sem medo, aqueles que merecem ser amados.
Busque a humanidade que ainda existe dentro e fora de você.
Então, coragem! É o que de melhor posso lhe sugerir.
Se desejar, envie seus comentários para psicologaheloisalima@gmail.com