“Essa menina, essa mulher, essa senhora,
Em que esbarro toda hora
No espelho casual…
É feita de sombra e tanta luz,
De tanta lama e tanta cruz,
Que acha tudo natural.”
In: Essa Mulher – de Elis Regina
Depoimento de uma filha cuja mãe, por anos, foi sua maior antagonista e rival.
“Minha mãe ‘adolesceu’ comigo. E a nossa não podia mesmo ser considerada uma relação muito comum – e nem sei se existem relações comuns. Porque, no fundo, acredito que todo tipo de ‘modelo’ seja, acima de tudo, uma das inúmeras farsas que repercutimos no decorrer de nossas vidas em nome de parecermos normaizinhos e bem modelados.
Por um lado, foi muito importante a chance de me relacionar com uma mulher tão diferente e singular. Quase uma diva. Mas essa também se configurou como minha marca mais indelével numa espécie de máscara que encobria uma disputa muda, principalmente entre ela e minha irmã mais velha. Éramos duas filhas.
Íamos juntas aos lugares mais badalados que minha mãe adorava frequentar. Por vezes, e perdi a conta de quantas, não era possível distinguir quem era a mãe no meio daquelas três mulheres.
Também sequer consigo lembrar de quantos rapazes se apaixonaram por ela antes mesmo de enxergar a mim ou a minha irmã.
Um dia a irmã que disputava tal espaço com ela morreu.
E foi desta forma inesperada e dolorosa que minha mãe finalmente conectou-se com a própria melancolia, que considero um estágio mais ‘patológico’ do que a depressão.
Nas fotos, todos enxergavam apenas sua magnífica exuberância.
Mas em seus olhos, no fundo, eu conseguia ver uma névoa cinza, dissipada no meio de alegrias exageradas, da intensidade exacerbada com a qual vivia todos os seus momentos.
Hoje eu sei que, no fundo, ela era uma pessoa profundamente melancólica, embora uma fina e bem construída aparência tentasse dar conta de esconder isto.
A morte da minha irmã possibilitaria, então, que essa dor, feito um lamento calado, finalmente aparecesse já no mesmo dia em que ela foi enterrada. No entanto, numa tentativa insana de encobrir o sofrimento pungente e dilacerante, ela decidiu convocar toda a família para jantar uma renomada churrascaria, onde bebeu – mais uma vez – demais.
Depois disso, surpreendentemente, minha mãe pareceu que ficaria mais sensível a um papel mais maternal. Parou de sair com tanta frequência, começou a cuidar melhor da casa, mas nem houve tempo suficiente para esta retomada. Sua caminhada foi brutalmente interrompida quando, pouco depois, meu pai também faleceu.
Não é preciso sequer dizer que a partir de então ela simplesmente degringolou. Feito uma bússola desgovernada, perdeu o norte. O baque foi maior do que quando envolvera minha irmã. Afinal, meu pai sempre fora o chão necessário para que ela pudesse caminhar. Um chão vital, onde tudo podia ser projetado. Minha mãe, que não conseguiu ser filha, não soube ser mãe. E quando imaginou que podia seguir ainda como filha, amparada pelos braços de meu pai, a vida lhe rendeu mais este golpe.
Depois da morte dele, ela, de uma maneira previsível, simplesmente desandou. Fez uma porção de besteiras, perdeu dinheiro, vendeu bens desastrosamente, uma porção de coisas tolas e infantis. Dizia que só entendera o valor de meu pai depois da sua partida.
Mas, um dia, ela também ficou doente. Queria morar comigo, mas eu não podia morar com ela. Eu estava para me casar e não era mesmo possível imaginar assumir uma filha como minha mãe prometia ser. Eu era ainda jovem demais. A partir de então, ela tornou-se uma mulher tão cindida que chegou ao ponto de me chantagear em nome da necessidade de viver comigo. A duras penas respondi que não.
E, como era muito superficial em relação aos seus próprios sentimentos, ela não conseguia se conectar afetivamente com ninguém. Não era uma figura acolhedora nem dentro de casa, nem na relação familiar e, muito menos, nas relações interpessoais.
Hoje eu sei que afeto é a capacidade que o indivíduo tem para se deixar tocar assim como saber tocar. Deixar-se afetar pelo outro da mesma forma que aceita que o outro seja afetado por você. Existe dança mais amorosa e perfeita que esta?
Ter afeto pelo outro não é precisar do outro – e minha mãe precisava muito do meu pai. Ela não prescindia dele. Ele lhe era vital. Portanto, ficar sem meu pai foi como morrer também. E essa metáfora cruel lhe foi imprimida num câncer tão insidioso quanto devastador que um dia a levou de nós.
Para mim, o câncer tem uma função: ele é o símbolo que indica o que está desconectado na sua vida e para onde você tem de ir. O câncer tem a ver com a dissociação do ser. E minha mãe teve um câncer de pulmão sem nunca sequer ter fumado.
Portanto, no meu caso, o fato de ter sobrevivido à tantas perdas parece estar relacionado à uma luta pessoal e silenciosa que travei a favor da resistência. E dizer não aos ‘convites’ à pactos familiares pode me ter salvo de tamanho infortúnio ao qual eu parecia designada.
Porém, ter sobrevivido não me livrou do sentimento de culpa que por anos carreguei. Viver já é tão difícil. Mas sobreviver à tamanha perda tornou-se um fardo incompreensível naquela altura de minha jovem e promissora vida. Quando eu resolvi dizer ‘não’ à minha mãe, foi preciso conceber que ali, naquela decisão, existia uma raiva contida, um grito quase que inaudível por ajuda.
E só muito depois pude compreender que quem precisava de socorro era eu.
E, deste modo, era eu quem não queria mais tomar conta de ninguém. E, como numa espécie de provação, assim que me formei em Publicidade, minha mãe faleceu. Um pouco depois, minha melhor amiga também. E, finalmente, depois de tantos episódios penosos eu ‘concebi’ me deprimir.
Algum tempo depois, já mais amadurecida e fortalecida pela dor, retomei meu fio da meada. Entendi que minha irmã mais velha, e a que menos se identificava com minha mãe, também passou por muitos conflitos. Cortou, de algum jeito, muitos vínculos com a referência materna. Negou quase que integralmente nossa mãe e jamais conseguiu enxergá-la como alguém que também havia sido ferida no decorrer da sua difícil trajetória.
Às vezes penso que tenhamos todas sido vítimas de um ambiente familiar que, preso a um modelo desprovido de sentido, clamava por uma melhor compreensão que nos desse a chance de nos livrarmos daquele padrão tão dolorosamente restritivo.
Lá no começo, eu via a minha família como uma referência a ser seguida, mas, ao mesmo tempo, percebia a possibilidade de que isso pudesse se inverter. Portanto, uma matriz a ser seguida – ou não.
Esta foi a minha salvação.
Hoje, depois de três casamentos, sinto-me muito mais livre para determinar minhas escolhas de maneira independente e feliz e para refletir sobre este pedaço da minha história do qual gosto de falar e cujo fio não temo mais perder.”
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