“Mirem-se no exemplo
Daquelas mulheres de Atenas.
Temem por seus maridos
Heróis e amantes de Atenas.
As jovens viúvas marcadas
E as gestantes abandonadas,
Não fazem cenas.
Vestem-se de negro, se encolhem,
Se conformam e se recolhem
Às suas novenas, serenas.”
In: Mulheres de Atenas – de Chico Buarque
Há poucos dias, o sujeito que atende pelo nome de Marcos Scalercio, um juiz de direito do estado de São Paulo, acusado de assédio e de estupro contra SESSENTA E QUATRO MULHERES, retornou de suas providenciais férias e passou a trabalhar em outro fórum, diferente daquele onde ficou conhecido por seus crimes.
Fácil, né?
Certamente seguro da sua onipotência e de seu ‘poder’, esta criatura com certeza acredita que pode fazer o que bem entende, sem se importar com qualquer tipo de limite.
Estranha-se a falta de apuração por parte do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que emprega este senhor, posto que várias pessoas o acusaram por diversos e chocantes episódios.
Vai mesmo ficar valendo a tal ‘cumplicidade’ acima de qualquer contradição?
Já o grandalhão, autointitulado ‘empresário’, Thiago Brennand – cuja própria família confessa temer – também acusado de agressão, estupro e cárcere privado por mulheres que tiveram o azar de cruzar sua frente – ainda que com pedido de prisão expedido, se encontra livre, passeando nos Emirados Árabes.
Perfeito, não?
Considerando inúmeros e robustos estudos, é bastante provável que não serão suas últimas investidas, nem suas derradeiras violações. Afinal, “homens” desta espécie estão acostumados a lidar com o que consideram ‘fraquezas’ desta forma torpe e covarde.
Quanto mais desprotegida, dependente do emprego, por exemplo, quanto mais ‘necessitada’ (aos olhos do malfeitor) mais a vítima se torna “atraente” para o algoz. É como se sobrepor ao que vê como vulnerabilidade lhe conferisse total controle – já que, no fundo, odeia a flagrante e inquestionável baixa autoestima.
Exemplos de pervertidos desta natureza pululam nos noticiários policiais, nas conversas secretas das famílias, nas falas envolvendo amigos, vizinhos, lamentavelmente, como fonte de fofocas.
Na verdade, este tema deveria envolver toda a sociedade, de maneira clara e aberta, em nome de abandonar seu lugar obscuro e ganhar a evidência que tanto necessita. Para que não tenhamos que assistir, impassíveis, mais e mais dramas como o da brilhante e promissora farmacêutica cearense que até hoje enseja o combate da violência contra as mulheres neste país.
Amável e encantador no começo do relacionamento, Marcos Antônio Heredia Viveiros foi, aos poucos, se transformando numa pessoa estranha, agressiva e altamente lesiva em relação à sua esposa e às três filhas.
Tal comportamento culminou com um tiro nas costas de Maria da Penha numa noite de maio de 1983.
Apesar de todas as evidências, depois de uma internação que durou quatro meses, passados entre cirurgias e tratamentos, já tetraplégica, ela foi obrigada a voltar para casa e viver com seu carrasco porque a lei defendia que, no caso de “abandono do lar”, ela corria o impensável risco de perder a guarda das suas meninas – que também eram vítimas da psicopatia do marido/pai.
Tempos depois ela acabou sendo, mais uma vez, mortalmente agredida por Viveiros que tentou eletrocutá-la durante um banho.
Nesta altura a polícia concluiu que ele, de fato, era culpado pelas duas tentativas de homicídio contra a esposa e mãe das três meninas que, naquela época, tinham 7, 5 e 2 anos de idade.
E, então, aos 38 anos Maria da Penha tornou-se uma figura internacionalmente reconhecida não só pelo drama vivido como por sua luta pela justiça que, desde então, se transformara em sua bandeira.
Apesar de tudo, seu ex-marido levou 20 longos anos para ser preso e o foi apenas por conta das pressões internacionais – já que o caso tomara tais proporções – e seis meses antes do crime prescrever.
No final, foi condenado a oito anos de prisão e cumpriu apenas 16 meses em regime fechado.
Ainda hoje o facínora gosta de repetir que foi vítima de difamação por parte de Maria da Penha. Não obstante as filhas o terem renegado retirando, inclusive, o seu sobrenome, este homem teve outras duas meninas com duas mulheres.
Já Bárbara Penna tinha 19 anos foi queimada pelo ex-companheiro João Guatimozin Moojen Neto que também matou seus dois filhos.
Bárbara perdoava toda a violência que experimentava porque acreditava que era um tipo de ‘demonstração de amor’.
“Na época eu achava que ele tinha esse ciúme todo porque gostava muito de mim. Coisa de guria nova. Hoje vejo que não, que era doentio. Eu achava que ele ia mudar”, recorda.
Olhando para a história por trás da violência contra as mulheres, encontramos dados perturbadores: entre os gregos havia uma religião bastante humana, consolidada numa deusa-mãe, tão aceita quanto respeitada, uma vez que a Terra era fertilidade, era maternal. Mãe, santidade.
Mas nossa religião judaico-cristã mostrou-se formidável para os homens já que se sustentava (e assim segue fazendo) na tríade Pai, Filho e Espírito Santo. Não há nenhum vestígio de mulheres. E a única mulher que vemos não é propriamente um modelo para as mulheres posto ser ela virgem e mãe, o que é uma impossibilidade biológica.
Assim, a mulher foi separada da divindade. E passou a ser abusada e oprimida em sua própria natureza.
Na época da Roma antiga, por exemplo, um marido tinha o direito de vida e de morte sobre sua mulher da mesma forma que o tinha quanto aos seus escravos.
Durante dois séculos foram queimadas mais de 9 milhões de bruxas na Europa, porque representavam o poder feminino que cuidava, curava, ajudava parir e criar. Logo, amava. Portanto, sempre que as mulheres tentavam se reagrupar para fazerem o incrível e mágico exercício do verdadeiro afeto e da natureza vibrante, provocavam reações frenéticas dos homens a fim de trazê-las de volta em seu “lugar”.
É o que tentam fazer homens como José Mayer, Marco Herédia e João Guatimozin.
Penso que é a mal disfarçada dominação social e coletiva das mulheres pelos homens, que permite a dominação individual de um homem em relação à sua parceira.
No Canadá, as mulheres adquiriram o status de legal pessoa, em 1929. Antes disso, as mulheres eram consideradas propriedade de pais e maridos.
Indiscutível também é a jeito como meninos e meninas continuam sendo educados. Enquanto a garota continua sendo treinada para a obediência, valorizando-se sua gentileza, delicadeza e educação, o menino, por sua vez, é educado para conquistar e ser reconhecido como “um cara real” quando obtém algo pela força ou astúcia.
Hoje, embora muitas busquem parcerias ao lado dos homens, as mulheres são constantemente lembradas de que devem se preocupar com o seu corpo e sua aparência a fim de agradar aos homens. Aparentemente mais assertiva e independente, algumas mulheres jovens permanecem sujeitas ao olhar dos homens e acabam acolhendo comportamentos inaceitáveis em seus relacionamentos afetivos.
Ocorre que grande parte das vítimas de violências domésticas teima em tentar entender por que seu parceiro age “daquela forma” com elas. “Por que sou tratada dessa maneira? ” ” O que eu fiz para merecer isso? ”
Eles culpam a si mesmas enquanto acreditam, erroneamente, que são responsáveis pela violência que experimentam.
É possível afirmar, sem qualquer sombra de dúvidas, que este é um fenômeno global, que envolve pessoas que usam o poder conferido pela sociedade em que estão inseridas e que lhe dá o “aval” para a prática de dominação contra suas parceiras.
Afinal, é preciso sempre lembrar que enquanto não denunciarmos nossa dor e nossas agruras, não encontraremos parcerias saudáveis e construtivas. Afinal:
“A principal finalidade da Lei nº 11.340 que pune este tipo de crime não é punir os homens. É prevenir e proteger as mulheres da violência doméstica e fazer com que esta mulher tenha uma vida livre de violência”.
“A vida começa quando a violência acaba”. (Maria da Penha)
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