A HORA E A VEZ

imagem movimento mãos separando

“Vê quantas voltas tem que dar o amor.
Fica com medo de querer chegar.
Paga promessa que não fez,
Diz a verdade ao mentir
E não tem volta não, volta não.
Olha no espelho e só vê o amor.
Agora sabe que perdeu a paz.
Jogou o laço e se prendeu,
O inesperado aconteceu.
A vez da caça e a hora do caçador.”

In: A Hora e a Vez – Boca Livre


Entre eles não restaria qualquer lembrança ruim. Nenhuma mágoa, nenhuma dúvida, nada de desagradável, enfim. Permaneceriam bons amigos e dividiriam, sem conflitos, as pequenas tarefas relacionadas aos filhos já crescidos e quase independentes. Lançando mão do aparente equilíbrio com o qual sempre resolveram suas pequenas pendências e raras diferenças, Luciana não temia surpresas.

Tudo estava combinado.

Saíra daquela conversa tão convencida do perfeito desfecho que levou alguns segundos para perceber que aquele cinzeiro, vindo em sua direção e estilhaçando-se contra a parede, fora lançado pelas mãos de Ricardo. Num rápido reflexo, virou o rosto de lado ainda a tempo de sentir o vácuo que aquele inesperado deslocamento de ar provocara.

Com os olhos arregalados virou-se e encontrou o olhar do marido.

Sim, eles seguiam casados.

Mas tudo não ficara claramente ajustado? A divisão dos bens, a partilha de cada livro, cada quadro, cada pedaço? Pois, então, que manifestação maluca fora aquela? De onde partira tamanha raiva? Aonde foi que ela estivera escondida durante todos aqueles anos de convivência pacífica e acomodada? Ou, sendo bastante honesta, morna? Muitas vezes sem graça e sem emoção, é bem verdade. Praticamente um tédio, teve de admitir. Mas, com certeza, uma relação onde parecia não haver espaço para desavenças, agressões, palavras duras ou gestos bruscos. Quase uma ausência de gestos, por sinal. Luciana tentou lembrar-se do último beijo, de um abraço apertado, de um simples afago. Nada. Não vislumbrava a mais tênue lembrança sequer. Quem sabe um leve toque fugidio, quase disfarçado? Nem isso. Há quantos meses não transavam? Há quanto tempo nem mesmo se tocavam? Anos? E foi pensando nisso que seus olhos encontraram o olhar assustado daquele homem com quem por tanto tempo convivera.

Seu marido.

E deu-se conta de que provavelmente nem mesmo ele conseguiria explicar a dimensão daquele gesto insano.

Enquanto os dois se fitavam sobressaltados, Luciana foi lentamente se afastando em direção ao quarto para terminar de arrumar sua mala, conforme há instantes fora pacificamente combinado. Atrás de si, fechou a pesada porta maciça que tanto relutara em comprar alguns anos atrás. “Vai ficar muito estranho”, reclamara na ocasião. Mas o marido não ligou. Veio a porta. Assim como vieram as poltronas e os tapetes persas avermelhados. Luciana, então, acostumou-se a não mais reclamar sobre coisas que ele considerava “insignificantes detalhes’. Afinal, o detalhe mais significativo, pensou, enquanto observava as cores do quarto de casal, era que o marido sempre soubera o quanto ela detestava a cor vermelha que ali, ostensivamente, predominava.

Aproximou-se da janela e, correndo o olhar pelo quarto, deparou-se com as poltronas tão familiares quanto suas mantas florais de fundo escarlate. Sem que conscientemente se desse conta do que estava por fazer, suas duas mãos agarraram-se fortemente a elas e, num piscar de olhos, tomada por uma incontrolável fúria, rasgou-as em duas bandas quase simétricas. As lindas e caríssimas cobertas que o marido, anos atrás, comprara na loja mais cara da cidade, estavam definitivamente arruinadas!

Enquanto sentia paralisar-se estupefata, braços abertos a contemplar cada um dos fragmentos de tecido ainda presos em suas mãos, Luciana foi subitamente tomada por um alívio extraordinário. Finalmente expressara a enorme raiva que a experiência de conviver com tais objetos, por anos a fio, silenciosamente mobilizara. A sensação foi tão animadora que passou a rasgar cada pedaço numa sofreguidão crescente e assustadoramente vigorosa.

Pôde sentir uma ponta de satisfação e prazer, sentimentos que há anos não experimentava. Passados alguns minutos, deu-se conta de que a as mantas que adornavam as poltronas haviam se transformado num amontoado de meros retalhos.

Abrindo um grande sorriso, jogou-se de costas na cama e contemplou seu quarto com uma enorme sensação de bem-estar, como se o visse pela primeira vez. Voltou a sentar-se na cama e fitou o tapete ao lado da bela mesa de vidro onde por muito tempo ela e o marido haviam saboreado o desjejum sem sequer trocarem um olhar. Observou a escrivaninha e avistou a tesoura que horas antes utilizara para recortar uma velha receita. E, antes que qualquer névoa de razão despontasse, saltou da cama, agarrou-a rapidamente pelo cabo e espetou, com um lance certeiro, o centro do caro tapete persa. Fincando-lhe a ponta, freneticamente arrastou-a de um lado ao outro, até perceber que os fios se soltavam.

Pronto! Lá estava o estrago definitivamente consumado. Uma nova arte sobre outra dispendiosa obra. O tapete fora irremediavelmente danificado. Nada poderia recuperá-lo, nada seria capaz de torná-lo novamente o objeto valioso como até segundos atrás se apresentava. Nada seria capaz de desfazer aquele ultraje. Numa fração de segundo concedera a si o poder de uma iniciativa até então inimaginável. Não havia mais as mantas sobre as poltronas, não havia mais o tapete persa, não havia mais amor, não havia mais nada capaz de recuperar o que definitivamente se aniquilara.  

O casamento estava acabado. Por baixo daquela porta jazia o monumento, até então imaculado, da história malfadada de duas vidas que se entrelaçaram por alguma razão, tanto tempo atrás, mas que, naquele momento, escolhiam separar-se.

Vencida pelas lágrimas que lhe escorriam rosto abaixo, pressentiu que o marido acompanhava todos os seus movimentos, colado à porta do quarto, certamente na esperança de ouvir uma declaração de intenção de mudança de planos de última hora. E continuou a chorar como nunca mais fizera.

Ali, na velha porta maciça, dois parceiros solitários de uma silenciosa jornada encostaram-se de lados opostos e soluçaram pela dor de velar um amor que era findo e precisava ser enterrado.

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