“Deixe em paz meu coração,
Que ele é um pote até aqui de mágoa
E qualquer desatenção, faça não,
Pode ser a gota d’água.”
In: Gota d’Água – de Chico Buarque
Suicídio é um tema que sempre esteve presente na minha vida – profissional ou não. Tive pacientes, parentes, amigas e amigos que tentaram, alguns que conseguiram. Até que certo dia recebi a carta de uma leitora que, com a devida autorização, reproduzo a seguir:
“Minha mãe tentou se matar durante a pandemia. Logo depois de entrar na menopausa, diante de um casamento que chegara naquele estado de pura tolerância, ela, absolutamente infeliz, com dois filhos criados e uma filha adolescente cheia de questionamentos e rivalidades, não suportava mais viver.
Chorava escondida de todos, cada vez mais isolada. Disfarçava muito bem sua inquietude e sua aflição. Minha irmã mais jovem não conseguiu enxergar nada. Eu e meu irmão mais velho, cheios de responsabilidades em nossas vidas, também não.
Meu pai, àquela altura, desprovido de qualquer olhar de afeto e incapaz de perceber o sofrimento da mulher com quem vivia há mais de 30 anos, não anteviu a tragédia.
Então, um dia, ela escreveu um bilhete de despedida. Entre comprimidos e goles de bebida, vinho talvez, algumas letras trôpegas registraram frases desconexas das quais uma se sobressaía: ‘Viver…. para que?’
Apenas depois de lavagens estomacais e internação numa clínica, sua dolorosa jornada de volta à vida nos fez perceber que ali, diante daquela que sempre fora nosso maior exemplo, emergiu uma força incrível capaz de nos reagrupar dentro desta nova realidade: a de que estávamos todos deixando nossa humanidade esvair-se em nome de obter algum ‘sucesso’ na vida – prosperidade esta que não nos levaria à nada que não fosse nosso próprio desterro.
Penso que, apesar de todo sofrimento, esta foi a possibilidade única de retomarmos os mais sólidos e imprescindíveis vínculos que, no final, nos salvaram a todos.
Hoje seguimos mais próximos e cuidadosos uns com os outros.”
É importante lembrar que este é apenas um dos inúmeros depoimentos que tenho recebido. Desta forma, constato este estado generalizado de descrença e desilusão que anda alcançando tanto os muito jovens quanto os mais velhos em nossa sociedade.
Ouço muitas queixas sobre ausência de afeto, de solidariedade, de emprego, de dinheiro e de esperança num futuro melhor, entre outros sentimentos que remetem ao abandono e à solidão. E este é o quadro de depressão generalizada mais agudo alcançado nos últimos anos.
De acordo com um recente relatório da OMS, a cada 40 segundos uma pessoa comete suicídio no mundo. No Brasil, a cada 45 minutos (32 por dia).
Um estudo inédito realizado pela Fiocruz avaliando o comportamento do suicídio no Brasil em 2020, mostrou parte dos efeitos indiretos associados à primeira onda da pandemia de Covid-19 envolvendo mortes por suicídio, com aumento significativo nas regiões Norte e Nordeste, socioeconomicamente mais vulneráveis.
O Brasil está em primeiro lugar no ranking latino-americano da depressão e em quinta posição no mundial. Os dados são da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Mas o número de casos pode ser muito maior – isto porque muitos não são esclarecidos ou são encobertos pelos familiares. Isto porque a saúde mental é negligenciada e os números de suicídios tendem a aumentar proporcionalmente às taxas de ansiedade e depressão.
Não obstante sua prevalência na camada com idade superior a 50 anos, a prática suicida vem aumentando significativamente entre jovens e adultos dos 14 aos 30 anos de idade.
É, de fato, uma estatística impressionante esta que aponta os muito jovens dentre os potenciais suicidas em nosso país. O psiquiatra Geraldo Possendoro afirma não ser raro que muitas pessoas deprimidas – e não tratadas – estejam entre as vítimas desta epidemia, além de também estarem propensas a se utilizarem do álcool e das drogas a fim de atenuarem a angústia que sentem.
De qualquer maneira é muito importante observar que o suicida pode emitir sinais do seu sofrimento, por vezes, durante muito tempo. Os sintomas que podem servir de alerta para o fato de que um indivíduo está pensando em suicídio coincidem frequentemente com os da depressão.
Eles geralmente variam, mas é importante ressaltar que os indivíduos depressivos são perfeitamente tratáveis – desde que diagnosticados.
Normalmente, a tomada de decisão se dá de maneira gradual e, portanto, pode passar despercebida. A própria pessoa pode assumir que está apenas passando por uma ‘transição normal da vida’, onde os relacionamentos e as experiências não são tão interessantes ou emocionantes como uma vez foram.
Isso nunca é verdade.
Depressão e pensamentos suicidas podem ser provocados por uma variedade de causas, e qualquer uma delas, ou uma combinação de várias, pode contribuir para o seu aprofundamento.
Depressão ou pensamentos de suicídio podem afetar qualquer um. A notícia encorajadora é que é totalmente controlável e os pensamentos de suicídio podem ser transformados em pensamentos de esperança.
É preciso entender – e acreditar – que existe ajuda disponível. Muitas pessoas que vivem com depressão ou pensamentos de suicídio acreditam que estarão ‘presas’ dentro deste círculo para sempre. Isto não é verdadeiro. Todas as situações e circunstâncias podem ser transformadas. Tudo pode melhorar.
Mas o primeiro e mais importante passo sempre será decidir buscar tratamento e apoio e isto fará toda a diferença. E quais são os sinais de alerta?
Tudo depende da nossa capacidade de reconhecer as pessoas que estão em perigo e que podem estar em risco. Existem algumas chaves que podemos detectar. Algumas delas:
1 – Ideação (pensamentos suicidas) – fala muito no tema e procura informações/notícias a respeito;
2 – Abuso de substâncias – começa a beber demais, fumar demais e usar drogas em abundância;
3 – Sensação de inutilidade – comenta que não serve para nada, que nada do que faz é bom e em nada se sai bem;
4 – Ansiedade constante – apresenta medos difusos e frequentes;
5 – Sentimento de falta de perspectivas – perde o interesse em atividades que anteriormente apreciava; não tem mais vontade de recomeçar ou começar coisas;
6 – Sensação de desesperança e de desamparo – ainda que existam pessoas dispostas a fornecer apoio, não percebe qualquer sinal de empatia; seu mundo encontra-se sombrio e ameaçador;
7 – Falta de espaço para o consolo – quando não percebe sequer suas necessidades emocionais; não permite mais a aproximação das pessoas que antes lhe eram caras;
8 – Raiva – diante do seu isolamento passa a enxergar o mundo como algo assustador e as pessoas como ameaças potenciais; transforma-se numa pessoa muito agitada propensa a atos/respostas agressivos ou violentos;
9 – Imprudência em diversos aspectos da vida – dirige perigosamente; adota hábitos sexuais promíscuos; deixa de medicar-se; alimenta-se mal; abandona o autocuidado e negligencia suas necessidades básicas;
10 – Mudanças dramáticas de humor – a pessoa antes satisfeita e tranquila transforma-se em alguém predominantemente impaciente e impulsivo.
11 – Mudanças pessoais bruscas – perde ou ganha peso rápido demais; sente-se cansado a maior parte do tempo; muda drasticamente hábitos alimentares e de sono;
Existem, ainda, outros comportamentos a serem percebidos e que podem sugerir que alguém está em risco de suicídio que incluem algumas expressões verbais diretas e indiretas como: “Eu não quero mais viver“, “Não há mais nada para viver“, “As pessoas ficarão melhor sem mim“, etc.
No entanto, esta realidade continua a ser largamente ignorada.
Para os amigos e famílias resta o sentimento de perda que é agravado pela sensação de que algo poderia ter sido feito: “como não fomos capazes de detectar que isso iria acontecer?”
Culpa e tristeza ficam misturados à desolação que, em geral, é vivida em silêncio num martírio onde sobram perguntas e faltam respostas. São as outras vítimas. E sobreviventes também precisam de ajuda para avançar. E não existem somente mortes por suicídio. É preciso contabilizar as tentativas sem ‘sucesso’.
As mulheres predominam nas tentativas e homens nas ações concluídas. E isto parece não chamar a atenção dos estudiosos nem dos humanistas. O que, certamente, indica que algo de muito ruim está acontecendo com o Brasil e com nossas relações dentro desta sociedade.
E lembre-se: você pode conseguir ajuda todos os dias do ano, 24 horas por dia, acessando o site http://www.cvv.org.br ou ligando gratuitamente para o número 188 (Centro de Valorização da Vida).
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