“Como nasce do lodo do fundo dos mares,
O velho vestígio da embarcação,
Há de vir das ruínas dos nossos pesares
A primeira luz do nosso coração.”
In: Ruínas de Sol – de Oswaldo Montenegro
Você tem certeza de que seus filhos se encontram em segurança neste exato momento? Tem plena convicção de que nenhum adulto, ou crianças mais velhas, estejam lhes impingindo algum tipo de sofrimento sem que você saiba?
Pense bem e tome o tempo que for necessário para isto.
Pode afirmar que nenhum professor, médico, padre ou pastor violou sua confiança e se aproximou de algum deles de maneira diferente?
Que de modo algum um parente – próximo ou distante – ou um amigo da família, um vizinho ou um conhecido, demonstrou um carinho tão especial a ponto de lhes causar certo desconforto?
Tem absoluta segurança disto?
Já imaginou como se sentirá se daqui há alguns anos descobrir que, durante tantos outros, seus amados filhos foram covardemente violados sem que ninguém desse um basta naquilo?
Pois então. O texto a seguir foi escrito baseado em relatos que ouvi durante anos, envolvendo adultos que só conseguiram verbalizar os horrores vividos enquanto eram completamente vulneráveis, e somente depois de passados 20, 30 ou 40 anos.
Grande parte vivia em famílias aparentemente equilibradas, algumas com alto poder aquisitivo, outras nem tanto. Mas todas foram incapazes de perceber a tragédia que se abatia sobre as vidas de seus filhos, ao mesmo tempo em que estes não conseguiam contar seu drama. Por vergonha, culpa, medo ou tudo isto junto.
Portanto, grave uma coisa: uma criança JAMAIS será capaz de confrontar a crueldade adulta. Ela não terá condições de entender, nem habilidades para saber lidar e, muito menos, discernimento para perceber situações de risco. E lembre-se: o abusador NÃO POSSUI capacidade empática; não se importa com o sofrimento que causa. É sempre um perverso tirano quando se encontra sozinho com seu alvo indefeso e, sobretudo, sabe aparentar ser amigável e confiável aos olhos de todos os demais.
Para tornar o texto mais didático, ele terá como centro denúncias bastante recentes (2018) de homens que resolveram expor os abusos, sofridos durante suas infâncias, perpetrados por membros da igreja católica, no interior de uma conhecida e ‘respeitada’ escola espanhola, a MARISTAS EM SANZ.
Ainda que as denúncias tenham começado a surgir na década de 80, os maristas sempre negaram tudo e conseguiram despistar eventuais investigações com seu poder e seus métodos de pressão e ameaças dirigidos aos pais dos meninos que tiveram coragem de contar suas histórias tão logo foram violentados. Afinal, eram donos de uma escola que recebia 1000 alunos por ano.
Então, passadas algumas décadas, quando uma das vítimas percebeu que o colégio estava ganhando a batalha com desmentidos e mentiras, decidiu que seu testemunho era a única forma de provar que tudo era verdade. Foi atrás de provas e as obteve com sucesso.
Jota – este é seu nome – imagina ter sido uma das crianças que mais sofreu abusos porque lembra-se de ter sido forçado a eles por mais de 50 vezes – dentro da escola!
Passou anos tentando esquecer a odiosa experiência. Anos depois, ao buscar recordar, entendeu que a quantidade de atrocidades era mesmo insuportável e avassaladora.
Seu relato:
Os abusos do professor Armando começaram quando eu tinha cerca de seis ou sete anos de idade. Nas colônias de férias, no colégio, na sala de cinema, nos vestiários, no laboratório, na sala de informática, os abusos continuaram até o oitavo ou nono ano.
Acontecia de tudo.
Às vezes, este professor levava dois meninos e havia sexo oral e masturbação, onde ejaculava em cima deles. Tudo dentro do colégio.
Nas colônias de férias era pior. Tudo o que se podia imaginar, o que se vê em filmes pornográficos, o que vier à mente, acontecia lá.
Fomos a casa dele em um fim de semana. Ele tinha montado barracas de acampamento perto da represa. Nesse dia, ele fez o que quis comigo. E eu lembro de que ele era muito peludo, como um maldito urso, e o suor caindo em mim sem parar…. fiquei paralisado, me sentindo enojado.
Os professores se davam bem com nossos pais, eram eles que organizavam os eventos, como este Armando que organizou Jesus Cristo Superstar. Imagine nos anos 80 um colégio com padres organizando este tipo de evento. E ele era bom nisto. E também fazia truques de mágicas que começavam com uma música que nunca vou esquecer: “com vocês, a magia e o ilusionismo de Arnold!”
Essa é a vida dele. Ele é um ilusionista. Ele é totalmente cínico. Um encantador de serpentes e a pessoa mais cínica do mundo.”
Ainda que Jota tenha denunciado este criminoso, ele NÃO pagou pelos seus crimes porque estariam ‘prescritos’. Não houve sequer investigação ou julgamento. Nada.
Por um lado, a instituição negava o que ele denunciava, mas, por outro lado, os próprios abusadores confessaram tudo em gravações obtidas secretamente.
Após estes registros serem publicamente divulgados, a corporação telefonou para Jota e reclamou da sua denúncia e não dos crimes que ali foram praticados por dezenas de anos!
Os ex-alunos ainda lembram deste professor como um monstro. E este caso descortinou o passado sombrio de outras instituições em Barcelona.
Por mais absurdo que pareça, na Espanha o prazo para prescrição deste tipo de crime é considerado quando a vítima completa 38 anos de idade enquanto que na Alemanha a denúncia é aceita até os 50 anos.
No caso dos Maristas, DOZE professores foram denunciados e apenas um, Joaquín Benítez, será de fato julgado. Isto, porque praticou seus crimes durante mais de TRINTA ANOS, desde 1980, só deixando a escola em 2011, quando um pai teve coragem de enfrentá-lo e ele acabou confessando o crime, dentre as centenas que cometeu.
Isto, mesmo a escola tendo tido ciência de abusos praticados por ele em 1985! Ou seja, ainda que os padres soubessem de seu comportamento, ele permaneceu molestando crianças por mais VINTE E SEIS ANOS!
Este professor, mesmo sem ter nenhuma formação na área da fisioterapia, possuía uma ‘sala de enfermaria’, ao lado do ginásio de esportes, onde “atendia” alunos por ele escolhidos. Dentro de uma sala TRANCADA. E era ali que ocorriam as atrocidades por ele praticadas. No interior da instituição. Sob a guarda desta.
Este monstro levava garotos até sua sala, ao lado dos vestiários, dizendo que precisava examinar algo que havia notado durante os treinos. Ali, deitava-os na maca e perguntava se eles se masturbam. Diante da resposta negativa, informava que precisava ver a cor do sêmen para ver se havia algum problema de saúde. Desta forma, masturbava as crianças e, depois, dizia que a cor estava boa e que podiam ir embora. Em outros momentos, praticava sexo oral ou fazia a penetração. Sempre avisava as crianças que elas deveriam se acostumar com ele as tocando. E que não deveriam contar nada a ninguém. Todos os garotos declararam sentirem-se muito confusos por não entenderem o que havia ocorrido.
Afinal, o que havia acontecido ali, com aquele professor sempre tão amistoso e próximo?
Assim, todos, invariavelmente, escolhiam imaginar que nada de errado havia ocorrido, ainda que a sensação de estranheza os acompanhasse dali em diante e até que os fatos fossem definitivamente enterrados na memória.
Este professor, como defesa, declarou ter sido ele mesmo interno no Colégio Mundet, em Barcelona, supervisionado pela igreja católica e onde, desde a infância, e por 16 anos, foi cotidianamente violentado.
O clássico, mas não menos dantesco, sub produto da violação sexual, quando violentadores tornam-se violadores potenciais. E isto pode acontecer, de fato.
Os casos alcançaram um professor que durante 37 anos passou por QUINZE colégios católicos, deixando um rastro de milhares de crianças seviciadas, além de vender suas imagens para sites pornográficos. Sua pena? QUATRO anos de ‘suspensão’. Hoje já deve estar de volta à sua repugnante ‘atividade’.
Da igreja católica, o de sempre: silêncio total sobre as incontáveis queixas recebidas. Papa Francisco não mudou uma vírgula desta realidade, apesar de ‘parecer’ que sim. Estes criminosos continuam a serem protegidos pelo Vaticano. ‘Tolerância Zero’ é apenas uma frase sem qualquer efetividade.
Para se ter uma ideia de como no Brasil as coisas conseguem ser piores, apenas em 2012, a contagem dos 20 anos para prescrição de crimes sexuais cometidos contra crianças e adolescentes passou a ser considerada a partir de quando a vítima completa 18 anos e não, como era antes, a partir da data do crime (abuso, estupro, etc.). Se uma criança sofrer um abuso aos 10 anos de idade, apenas até os 38 anos poderá denunciá-lo.
De qualquer forma, são apenas VINTE anos. Ou seja, menos da metade do tempo estipulado pela maioria dos países europeus, por exemplo.
Posso afirmar que este prazo é simplesmente INACEITÁVEL. Este tipo de crime precisa ser considerado imprescritível!
Tive vários pacientes que só conseguiram lembrar, entender e verbalizar os abusos sofridos depois da idade prevista.
Importante ressaltar que esta nova norma brasileira modificada, foi batizada com o nome da nadadora Joanna Maranhão em referência ao fato dela ter sido severamente molestada pelo treinador, quando tinha NOVE ANOS de idade.
Infelizmente, persiste uma espécie de ignorância deliberada por parte da sociedade. Como se as pessoas evitassem falar ou pensar sobre esta possibilidade, em nome de alguma ‘garantia’ mágica de que o mal jamais as alcançará.
O que precisamos entender, até para sabermos como lidar com esta realidade muito próxima de TODOS NÓS, é que as vítimas de violência sexual são muitas e se escondem por trás de um sofrimento silencioso, penoso e solitário. A maioria não irá mesmo declarar sua dor em qualquer momento de sua vida. Algumas desenvolverão comportamentos compulsivos, outras terão problemas para ampliar suas perspectivas de vida, umas se entregarão às drogas e ainda existirão as que escolherão o suicídio como uma saída possível.
E todas, absolutamente todas, necessitarão serem abraçadas, ouvidas e acolhidas. Incondicionalmente.
Para tanto, precisamos construir relações humanas onde vítimas possam pedir e, acima de tudo, encontrar ajuda, falando sobre o que aconteceu em suas vidas. Para que depois comecem a entender que podem fazer da sua dor um motor para um ativismo importante , onde possam localizar outras vítimas a fim de se organizarem, uma vez que individualmente podem ser massacradas, mas unidas não poderão ser caladas!
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