FELICIDADE DE MENTIRINHA

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“O velho de partida
Deixa a vida
Sem saudades;
Sem dívida, sem saldo,
Sem rival
Ou amizade.
Então eu lhe pergunto pelo amor;
Ele me diz que sempre se escondeu,
Não se comprometeu
Nem nunca se entregou.
E diga agora
O que é que eu digo ao povo,
O que é que tem de novo
Pra deixar;
Nada.
E eu vejo a triste estrada
Onde um dia eu vou parar.”

In: O Velho de Chico Buarque

Localizada no norte da Europa, a Dinamarca supostamente possui o decantado mais alto nível de ‘igualdade’ de riqueza do mundo e é também considerado o país com menor índice de “desigualdade social”. Desta forma, também foi eleita, por diversos anos, o lugar mais feliz do planeta, com base em um arbitrário princípio envolvendo índices de saúde, bem-estar, assistência social e educação universal.

Em 2022, neste estranho ranking, patrocinado por uma ‘afortunada’ ONU, a Finlândia ficou em primeiro lugar – não obstante ser também campeã no uso de antidepressivos.

Mesmo diante da pretensa ‘prosperidade’ em seu país, o ator e escritor dinamarquês Knud Romer foi obrigado a desistir de cuidar do pai por absoluta falta de condições. Entre triste, humilhado e revoltado, documentou o ostracismo do genitor, abandonado em uma casa de repouso, e explicou que o fez porque tinha (e tem) absoluta consciência do fato de que todos envelheceremos um dia e que, por isso, seria urgente que nos preocupássemos com o tema desde sempre.

Numa entrevista corajosa e verdadeira, ele denunciou o grande desejo do capitalismo: que todos se esqueçam dos seus laços emocionais, de seus sentimentos e vínculos fraternos com a história de suas próprias vidas e com as das vidas dos que lhes são caros e próximos para, assim, melhor produzirem para o sistema – onde a eficiência desmedida caminha de forma absolutamente contrária às necessidades de uma sociedade mais amorosa e humanizada.

E, então, declarou:

“Mais de um quarto dos idosos na Dinamarca tomam remédios antidepressivos devido à solidão. O idoso sabe que, mais dia menos dia, ficará isolado à margem da sociedade, preso numa gaiolinha de hamster de 20 metros quadrados, fedendo à urina, comendo legumes insossos, numa solidão total. As famílias não têm condições de cuidar dos seus velhos. Um quinto dos idosos ficam dementes e é praticamente impossível cuidar dos próprios pais quando ficam muito velhos e doentes. Eu não tinha o espaço, nem os recursos necessários. Quis comprar um apartamento no térreo, mas não tinha dinheiro suficiente. Não tive condições de contratar uma enfermeira. Depois de pagar impostos por 60 anos, meu pai teve que viver assim, com uma infecção na bexiga não tratada. Aí ele escorregou na própria urina e quebrou o fêmur.

O dia de maior vergonha para mim foi quando tive que desistir de cuidar do meu pai da forma como ele cuidou de mim a vida toda. Apesar de nossa ‘sociedade moderna’ ser uma das mais ricas do mundo, nós simplesmente colocamos nossos velhos numa placa de gelo e os empurramos mar adentro. Na realidade, no ‘estado de bem-estar social’ a gente se livra dos idosos. Ficamos livres da obrigação de cuidar deles.

Enquanto isso, frequentamos restaurantes franceses, passeamos de carro 4X4, gozamos de uma enorme liberdade de autorrealização. Nossa realização profissional fica em primeiro lugar. Aqueles que não interessam ao mercado de trabalho, que não se enquadram no modelo de consumo, que não cumprem metas racionais, são institucionalizados.

Os retardados, os deficientes, os idosos e até mesmo os bebês! Os bebês também só fazem atrapalhar. Precisamos ter as mãos livres. Por isso colocamos os bebês em instituições aos 12 meses de idade.

Ninguém faz isso porque quer. É como arrancar o próprio coração. É a mesma coisa quando se entrega o pai a um asilo e se desiste de cuidar dele. É como arrancar o coração do corpo. Assim, perde-se a união entre os humanos.

A família era para ter velhos, jovens, bebês, todos reunidos à mesa. Devíamos uns cuidar dos outros. Mas ficamos totalmente dispersos. Isso, para que aqueles que tem condições possam trabalhar, sem parar. A eficiência em primeiro lugar.

Os asilos geralmente ficam perto dos hospitais. Assim, os velhos podem ver o seu futuro pela janela. Já que o caminho é esse mesmo, é mais rápido assim. Pelo mesmo custo, poderiam colocar os asilos ao lado das creches. Assim, os idosos participariam da vida da comunidade. Fariam parte da coletividade. Seriam uma parte natural do nosso dia-a-dia. Melhor que exilá-los à margem da sociedade, sem referência ou participação.

Meu pai foi internado num hospital de primeiro mundo, onde faltava funcionário, a capacidade estava esgotada, nada funcionava. Não tinha nenhuma condição de levar meu pai a um hospital particular já que o governo fica com 60% dos meu salário. Confiava nos médicos e no que eles estavam fazendo.

A confiança é o cimento que dá a liga da sociedade. Por exemplo, ninguém embarca em um avião se não confia no piloto, se desconfia que ele pode estar bêbado, ou que seja incompetente. O funcionamento da sociedade deveria depender inteiramente da confiança. Mas eu perdi a confiança.

Naquele dia nada funcionava. Os médicos mal sabiam de que lado estava a fratura a ser operada. Pareciam estar adivinhando: será o esquerdo? O direito? O que importa? Sabiam que ele ia acabar morrendo de um coágulo mesmo. Acontece muito quando os idosos são operados. Peguei no braço para sentir o pulso.

Meu pai estava morto.

Meu pai foi um homem corretíssimo, o cidadão mais honrado e decente que conheci na vida. Qual foi sua recompensa? Três meses num asilo, ensopado na própria urina, e mais dois dias num hospital.

O enterro não tem mais ritual. O coveiro chega, bota o caixão no chão, joga terra por cima, e fim de conversa. Tchau. Tudo sem sentimento de ‘pertencimento’ ou de união familiar, sem rito, sem sentido, sem seriedade, sem sentimento.

A transitoriedade da vida, a doença, a velhice, que são elementos inalienáveis da existência, aqui são excluídos, suprimidos, negados. Não queremos lidar com eles.  Parece que toda a consideração humana, todos os princípios, desapareceram.

Precisamos iniciar um diálogo sobre que tipo de sociedade queremos, como queremos viver a nossa vida. A existência não pode ser moldada por imposições econômicas. Nem tudo se enquadra numa lógica consumista, nem tudo é padronizável. Querem eliminar tudo o que não for mais eficiente. Às vezes a caminhada é a parte mais importante. Às vezes, aquilo que dá trabalho é o certo. Às vezes, aquilo que não compensa é o certo. Em primeiro lugar, precisamos recuperar a união da família. Não podemos deixar-nos dominar pela cultura do trabalho. Não podemos deixar o mundo do trabalho ditar a organização da sociedade e da vida. Devemos nos guiar pelo amor, pela consideração e pelos valores humanos.

Se quisermos a companhia dos nossos bebês e dos nossos idosos, se quisermos uma vida normal e decente, com uns cuidando dos outros, a sociedade terá que ser reorganizada de acordo com isto.”

Desta forma, vale a pena pensarmos (para agirmos) seriamente sobre esta nossa irrefutável condição humana, não acham?

E, se desejar, envie seus comentários para psicologaheloisalima@gmail.com

2 pensamentos sobre “FELICIDADE DE MENTIRINHA

  1. Ola, boa reflexão trouxe a superfície. Tem uma mini serie na netflix chamada The midnight gospel, episodio 7 acho que faz todo sentido com o texto. principalmente com os ultimos parágrafos do seu texto.

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