“Pra descrever uma mulher
Não é do jeito que quiser.
Primeiro tem que ser sensível,
Se não é impossível.
Quem vê por fora
Não vai ver por dentro
O que ela é.
É um risco tentar resumir.”
In: Mulher – de Elba Ramalho
Mulheres – sejam elas cis, trans, travestis, não-binárias, etc. – costumam temer, desde a infância, a violência de estranhos, mas o fato é que o marido, o namorado ou alguém que elas conheçam, são seus predadores mais prováveis.
Isto vale principalmente para as mulheres cis (cisgênero é o termo utilizado para se referir a quem se identifica, em todos os aspectos, com seu ‘gênero de nascença’), porque os demais gêneros costumam ser vítimas da violência mais ampla, que envolve a estupidez, o desconhecimento, a ignorância e o preconceito.
Nos Estados Unidos, por exemplo, um país extremamente violento neste sentido, um dos lugares considerados como o mais perigoso para uma mulher é sua própria casa. Um terço dos assassinatos ocorrem ali. Anualmente, cerca de 2 milhões de homens norte-americanos agridem suas parceiras.
Uma verdadeira e emblemática história
A moça contou, entre lágrimas, que nunca imaginara que o ex-marido fosse capaz de fazer algum mal aos dois filhos que tiveram. Os filhos o amavam muito. E ele ‘parecia’ amá-los também. Mas só parecia.
Ainda assim, ela já sentia muito medo dos seus progressivos acessos ciúmes que, de uma hora para a outra, tornaram-se incontroláveis. A convivência com ele se transformara num penoso pesadelo.
Temeu por sua vida. Pelas vidas dos filhos – o impensável – jamais.
Porém, no dia seguinte, em todos os jornais, a manchete que se destacou foi:
“A polícia acredita que o homem tenha assassinado os filhos por ciúmes da ex-mulher depois dela ter publicado fotos da comemoração de seu recente aniversário.“
Com sutileza próxima a zero, os comandantes das polícias no Brasil, assim como os repórteres e editores de jornais e revistas, além dos apresentadores dos horrorosos programas ‘policiais’ de televisão, seriam todos igualmente impassíveis diante de um drama que envolvesse suas próprias mães? Muito provavelmente não.
Entretanto, em um mundo controlado por homens frios e insensíveis, na sua maior parte, as mulheres são as vítimas preferenciais.
Por conta disto, esta mãe não conseguiu perceber os sinais de hostilidade que o pai já demonstrava não apenas em relação a ela, mas, principalmente, em relação às crianças quando estas retornavam dos finais de semanas com a mensagem de que ele a acusava de ‘destruir sua família’.
Afinal, se ele manipulava os deste modo, seguramente não os amava coisa nenhuma. E muito menos a mãe. Um pai que esfaqueia seus filhos é um psicopata. E ponto final.
E é importante lembrarmos sempre de que este tipo de sentimento pode ser tudo, menos amor.
A mãe, desesperada, comenta que pensou, por diversas vezes, em entrar com uma ação de Alienação Parental por contas da percepção de que o pai estava prejudicando o equilíbrio mental dos filhos.
Certamente ouviu conselhos do tipo: “tenha paciência”, “ele está sofrendo”, “ama os filhos e ama você…”
Numa entrevista, logo depois da tragédia, o repórter teve a inacreditável coragem de perguntar:
“Mas quando você entrou com o pedido de medida protetiva no mês passado, não achava que algo poderia acontecer?”
Lembrando que tal pedido sequer chegou a ser analisado, a mãe respondeu:
“Eu achei que deveria fazer aquilo, mas não por gressão às crianças. Era para manter a sanidade deles, dar paz e tranquilidade para eles poderem seguir a vida como crianças normais. Era só isso que eu queria.”
Mesmo considerando as insinuações de que o sujeito fosse depressivo e que estivesse em tratamento há anos, é muito importante levantar como nenhum psiquiatra captou sua patologia?
Como ninguém entendeu seu quadro claramente psicótico?
Não importava? Pouco se lixaram com o risco que a família corria?
E por que ninguém dá crédito ao perigo representado pela perfeita e sórdida ‘sintonia’ que existe entre a desvalorização das mulheres e as violências cometidas contra elas todos os dias?
No mundo, de uma maneira geral, as mulheres recebem salário muito mais baixos do que os homens (numa média de 21%, mas existem casos onde esta porcentagem sobe para 50%) – independente dos cargos que ocupem – e representam 80% dos trabalhadores pobres que executam a maior parte dos serviços domésticos – além de trabalharem fora de casa.
Esta dupla jornada implica em elas trabalharem cerca de 7 horas e 30 minutos diários a mais do que os homens.
Fora isto, lembramos que treze mulheres são assassinadas por dia no Brasil – muito mais do que em muitos países. E que uma mulher é estuprada a cada 10 minutos – o que resulta em 144 mulheres sofrendo este tipo de crime diariamente.
Violências contra mulheres e meninas são muitas e muito frequentes no mundo onde uma em cada três delas já foi vítima dessas práticas, de acordo com um recente relatório publicado na revista médica The Lancer.
Golpes psicológicos e pressões familiares e sociais; mutilações genitais às quais já foram submetidas cerca de 140 milhões de meninas e mulheres; casamentos a que são obrigadas mais de 70 milhões de garotas antes dos 18 anos onde a maioria é fruto de estupro.
Aliás, uma informação aqui é indispensável: o Brasil se encontra em QUARTO lugar no vergonhoso ranking dos ‘casamentos’ infantis.
Todos os dias, as mulheres são maltratadas, sexualmente assediadas, abusadas, estupradas e psicologicamente torturadas em casa, no local de trabalho e na sociedade.
No entanto, o problema da violência contra as mulheres só recentemente foi reconhecido como crime e grande obstáculo à igualdade, ao desenvolvimento e à paz.
Com efeito, a paz – um direito humano fundamental – foi sistematicamente negada à metade da população mundial durante séculos, independentemente do tipo de sistemas políticos e jurídicos em que viviam.
O direito de uma mulher de estar livre do perigo e do medo por sua segurança pessoal dentro da casa, no local de trabalho e na sociedade é provavelmente a batalha mais dura que as mulheres irão permanecer travando até que toda a sociedade reconheça esta verdadeira luta.
Hoje as mulheres estão na vanguarda do mal: sofrem a insegurança, a desigualdade salarial, a imposição de jornadas com tempo desproporcional, o ataque aos apoios concedidos às mães trabalhadoras, o desemprego, etc.
Como já registramos, as mulheres são punidas diariamente por homens, por seus companheiros, por pessoas que lhes dizem o que fazer ou não. São violentadas pelos pais, namorados, vizinhos e desconhecidos. Crianças são transformadas em meros brinquedos, objetos no turismo sexual que corre solto no país.
Esta mãe abalada e tão profundamente desrespeitada por tantos é apenas mais uma vítima deste feroz desiquilíbrio que nos divide em grupinhos dentro de grupos pré-separados e desumanizados.
Seu ex-marido reproduziu esta concepção rasteira acerca do papel da mulher em nossa sociedade. Seus filhos foram vítimas da mesma ideia que coisifica relações em detrimento dos afetos.
Todos somos vítimas da mesma doença: a petrificação que nos torna verdadeiros idiotas.
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